05/12/2016
MP no Debate – Conjur
Mínimo existencial: um conceito dinâmico em prol da dignidade humana
Por Salomão Ismail Filho
A doutrina constitucional trata do princípio da “proibição da insuficiência”, cuja finalidade é auxiliar no acompanhamento da concretização dos direitos sociais, quando se define, a partir da Constituição, um conteúdo mínimo de direitos fundamentais, ao qual o legislador estaria vinculado e proibido de suprimir sem uma compensação adequada (QUEIROZ, 2006, p. 105-110).

Destarte, em tese, seria o caso de os poderes públicos assegurarem o respeito por um núcleo essencial, um patamar de conteúdo mínimo, com ações e projetos definidos, desde logo, no orçamento do governo. Tal patamar proibiria a insuficiência de direitos fundamentais básicos, a fim de garantir a dignidade humana. Suzana Tavares da Silva chega a se referir a uma “mochila da dignidade humana”, a ser garantida a cada indivíduo pelos governantes (SILVA, 2010, p. 129).

Esse patamar de conteúdo mínimo, visando garantir a qualidade de vida população, deve ter por referência o artigo 25 da Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948, o qual assegura que todo ser humano e seus familiares têm direito a uma qualidade de vida tal que lhes sejam assegurados saúde, alimentação, habitação, vestuário e serviços de previdência social os quais garantam proteção contra o desemprego, a viuvez e a velhice, dentre outras providências.

Acrescentaríamos, ainda, a educação como um direito social básico a ser garantido pelos poderes constituídos. Nesse sentido, como norma internacional complementar à declaração de direitos humanos, a ONU editou a Resolução 2.200-A (XXI), em 16/12/1966, que trata do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc). Deveras, o referido pacto internacional, expressamente, consagra a proteção contra a fome (artigo 11, parágrafo 2º) e a educação (artigo 13, parágrafo 1º) como direitos fundamentais sociais a serem assegurados pelos Estados signatários.

Eis a ideia de garantir a todo ser humano uma “segurança básica”, consistente em um mínimo existencial que lhe deve ser garantido, através da proteção da sua integridade física e psíquica em todas as suas dimensões, mediante a oferta de uma assistência social, permitindo que qualquer indivíduo possa viver a sua vida de forma digna, autodeterminada e livre (GOSEPATH, 2013, p. 79-80).

De fato, o mínimo existencial não trata apenas de garantir ao ser humano um “mínimo vital”, mas um mínimo de qualidade vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no plano individual (perante si mesmo) e social (perante a comunidade onde se encontra inserido).

O mínimo existencial possui, assim, uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social (Häberle, 2003, p. 356-362).

Todavia, a defesa de um mínimo existencial, fundamentado em uma ideia de proibição de insuficiência, não pode reduzir os direitos sociais a padrões mínimos de existência, tendo por corolário a acomodação dos gestores públicos e decisores políticos. E, nesse ponto, os membros do Ministério Público e demais agentes públicos responsáveis pelo controle da administração pública precisam estar bastante atentos.

Ora, a proibição da insuficiência tem que ser interpretada como um conceito dinâmico, como um verdadeiro ponto de partida, e não como um local de chegada. A partir dela, a efetivação dos direitos fundamentais em sua perspectiva social, não se entendendo que a efetivação de tais direitos termine com ela e nem que tal postulado trate apenas de garantir um mínimo vital.

Logo, a perspectiva social dos direitos fundamentais possui um horizonte de realização progressiva, o qual aponta não para a ideia de mínimo de bem-estar social, mas de máximo. Porém, trata-se de um máximo possível, à luz das riquezas do país em questão e do comprometimento do governo/sociedade em realizá-lo (CLÈVE, 2006, p. 239-252).

A propósito, o Tribunal Constitucional alemão, ao tratar do tema, através do acórdão BVerfGE 40, 121, em 18/6/1975, entendeu que o Estado, ao assegurar pressupostos mínimos de existência condigna para os hipossuficientes, ao mesmo tempo, também precisa inseri-los (ou reinseri-los) gradativamente na sociedade, além de criar a estrutura administrativa necessária para lhes dar a devida assistência.

Por conseguinte, o cânone do mínimo existencial não tem, em sua matriz, uma proposta estática ou de acomodação, havendo de ser interpretado como um marco inicial, tendo por meta o estabelecimento de políticas públicas no sentido de, progressivamente, tornar cada vez mais digna e feliz a vida daqueles que vivem em um Estado de Direito que se propõe a ser Democrático e Social.

Referências

CLÈVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, 54/28, p. 239-252, jan./mar. 2006.

GOSEPATH, Stefan. Uma pretensão de direito humano à proteção fundamental. Tradução de Cláudia Toledo e Bráulio Borges Barreiros. In:TOLEDO, Cláudia (Org.). Direitos Sociais em debate. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
Häberle, Peter. El Estado Constitucional. Tradução de Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003.

QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

SILVA, Suzana Tavares da. Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efectiva dos administrados. Revista de Direito Público e Regulação. Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 5, p. 129, mar-2010.
Salomão Ismail Filho é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. MBA em Gestão do Ministério Público pela UPE. Especialista e mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa e membro do Movimento Ministério Público Democrático.
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