10/01/2017
MP no Debate – Conjur
Legislativo abusou de seu poder de legislar no caso das “10 medidas”
09/01/2017
Por Ricardo Prado Pires de Campos
Ao final do ano se tornou comum ver a ânsia do exercício do Poder de Legislar pelo Congresso Nacional. Esse costume teve origem na necessidade de votação da lei orçamentária, pois, sem sua apreciação, os parlamentares não podem entrar de férias (artigo 57, § 2º, CF). O Executivo precisa da lei aprovada para desempenhar suas funções no exercício seguinte.

No último ano, foi diferente. O tema prioritário não era o orçamento, mas o projeto de lei de iniciativa popular, denominado de Dez Medidas contra a Corrupção (PL 4.850/2016). Projeto esse que teve no Ministério Público Federal seu grande defensor e indutor.

O país ganhou com o destaque dado ao tema na mídia, no cotidiano das redes sociais e no Parlamento. Nunca se discutiu tanto a corrupção. Foi o tema de 2016; pode ou não ser o de 2017. No turbilhão da vida moderna, difícil a arte de prever o futuro.

A iniciativa do projeto, que contou com a assinatura de mais de 2 milhões de cidadãos, e tem o apoio da grande maioria da população, encurralou os parlamentares, muitos deles sob suspeita do recebimento de valores ilegais.

O escândalo envolvendo a construtora Odebrecht, revelou o maior esquema de corrupção já desvendado, não apenas no Brasil, mas, talvez, no mundo; isso criou um clima de ansiedade no Parlamento jamais visto. Não creio que o problema seja apenas nosso, há muitos péssimos exemplos no globo terrestre.

O que o Brasil tem de inovador, nesse momento, para oferecer ao mundo, é o fato de haver revelado o problema na sua real dimensão. A operação “lava jato” descobriu o manto que encobria as atividades ilegais perpetradas nas salas dos palácios.

Ainda não chegou ao público a íntegra das delações premiadas, o que se espera ocorra em breve; mas o que se desvendou, permite deduzir a extensão do problema.

Se o país conseguirá encontrar uma solução — de curto prazo — para a endemia; talvez 2017 ajude a responder. E aqui a questão do poder de legislar, e mais propriamente, do abuso desse poder, mostra sua relevância. O Legislativo ocupa, na configuração tradicional da tripartição dos poderes, relevância indiscutível, mas não é absoluto, nem ilimitado.

O absolutismo vigorou na monarquia durante séculos, mas seus abusos fizeram surgir às inúmeras teorias que, gradativamente, o foram limitando: a da soberania popular, artigo 14 (Rousseau); a tripartição dos poderes, artigo 2º (Montesquieu), e muitas outras.

Nenhuma Constituição atual pode ser chamada de democrática se não conceber um sistema eficiente de divisão e controle recíproco dos poderes do estado. O chamado sistema de freios e contrapesos. Dentro desse sistema, o poder de legislar, também, possui limites, e não são poucos.

Há limites de mérito: assuntos sobre os quais o Parlamento sequer pode legislar (artigo 60, § 4º). As chamadas cláusulas pétreas da Constituição não são passíveis de deliberação em contrário. Dentre elas estão princípios importantíssimos da vida moderna: forma federativa de Estado, o direito de voto, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais.

Registra, a história, que, projeto de Emenda à Constituição, que buscava restaurar a pena de more no país, foi liminarmente arquivado pela Presidência da Câmara. Como a alteração se insurgia contra cláusula pétrea da Constituição — o direito à vida — a proposta sequer podia ser objeto de deliberação.

Ou seja, há temas sobre os quais o Parlamento sequer pode deliberar, e não são poucos. A Democracia é intocável. A República é cláusula pétrea (escolha popular no plebiscito de 1993), portanto, anistia para desvio e a apropriação de dinheiro público não pode ser objeto de deliberação (artigo 37, § 5º, CF). A tentativa de subordinação do Judiciário, também, é inconcebível: são poderes independentes (art.2º).

Além das limitações quanto ao conteúdo, também, há limitações temporais (artigo 60, § 1º), formais (art. 61, caput) e procedimentais (arts. 59 a 69 da CF), que não podem ser suprimidas. E nesse ponto foi que surgiu a liminar do ministro Luiz Fux que determinou a correção do procedimento do projeto de lei das “10 Medidas contra a Corrupção”.

A decisão foi proferida no Mandado de Segurança 34.530-DF, proposto pelo deputado Eduardo Bolsonaro, contra ato da Presidência da Câmara dos Deputados, que deu procedimento absolutamente irregular do Projeto 4.850, de 2016.

Duas são as falhas que maculam o devido processo legislativo: 1ª) o projeto foi autuado em nome de deputados e não como iniciativa popular, o que gerou erro no procedimento, pois, cada tipo de projeto tem processamento diferenciado; 2ª) a inclusão de matérias estranhas ao projeto, pois, a iniciativa da população foi para endurecer as penas dos crimes de corrupção e inibir a impunidade reinante nessa seara; o projeto popular não quis, nem tratou de incriminar policiais, juízes ou membros do Ministério Público.

Esse tipo de ação parlamentar não é permitido. Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal tem advertido o Legislativo sobre essa prática ilegal, basta ver a ADI 5.127-DF, julgada no Pleno em 15 de outubro de 2015, relator para acórdão Ministro Edson Fachin, onde constam inúmeros precedentes.

Esse expediente ganhou, na doutrina, a designação de contrabando, pois, inclui-se junto com a atividade legal uma parte absolutamente ilegal que, se da primeira estivesse apartada, jamais teria sucesso. Da mesma forma como fazem traficantes de drogas e outros contrabandistas.

Portanto, embora relevante, a atividade parlamentar possui limites, e eles estão definidos na legislação, cabendo ao STF, guardião da Carta Magna, repor os atos jurídicos em sua devida conformidade com a Constituição, ou extirpá-los do ordenamento jurídico. Essa é a atividade primeira do Tribunal Constitucional, a qual se espera seja cumprida sempre que necessário.
Ricardo Prado Pires de Campos é procurador de Justiça em São Paulo, mestre em Direito e 2º vice-presidente do Ministério Público Democrático.
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