17/10/2016
MP no Debate – Conjur
MP deve intervir nos litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana
Por Rogério Alvarez de Oliveira
O atual modelo de Ministério Público desenhado pela Constituição Federal de 1988 incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Em razão da natureza de suas atribuições, os membros do Ministério Público possuem autonomia funcional para atuar, exercendo suas funções dentro dos limites da Constituição Federal e da legislação. Ao conferir-lhe a atribuição de defender os interesses sociais indisponíveis, a Constituição outorgou ao Ministério Público a missão de guardião dos direitos sociais constitucionalmente garantidos aos cidadãos.

Sendo assim, incumbe ao MP a implementação e a garantia de efetividade dos direitos sociais previstos na carta magna. De outro lado, cabe ao Poder Executivo as ações e medidas para implementação das políticas públicas constitucionais. Deixando esse Poder de cumprir as políticas públicas elaboradas, competirá ao Ministério Público dar efetividade ao seu dever institucional de defender os interesses sociais indisponíveis. Dentre as políticas públicas que interessam ao presente tema se acham o direito à moradia, a reforma agrária e a função social da propriedade.

Esse breve preâmbulo é necessário à melhor compreensão do papel do Ministério Público nos litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Dispõe o artigo 178 do novo Código de Processo Civil que o Ministério Público deverá intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas na lei e, dentre outras, nos processos que envolvam litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana (inciso III). Assim sendo, nesta hipótese, como deverá se dar sua atuação nesses litígios coletivos? quais os limites e a finalidade dessa atuação?

É importante esclarecer que o Ministério Público, embora uno e indivisível, encontra-se organizado e estruturado, em razão da complexidade de suas funções, de modo a distribuí-las a seus diversos órgãos. Assim, em linhas gerais, há divisão entre as áreas criminal, cível e especializada (cidadania, meio ambiente, defesa do patrimônio público, infância e juventude, consumidor, ordem urbanística e outras). A necessidade de especialização das áreas de atuação é notória, reflexo da própria especialização do judiciário e dos múltiplos temas a ele direcionados.

A indivisibilidade do Ministério Público diz respeito à substituição de alguns de seus membros por outros, de forma ininterrupta. Ou seja, na ausência de um, outro assumirá as funções sem solução de continuidade. Isso não significa que a atuação de qualquer de seus membros em determinado caso, sem que ele possua a devida atribuição, tornará suprida a necessidade de intervenção do MP. Em outras palavras, não é qualquer membro do MP que poderá atuar em determinado caso, mas somente aquele que possui legitimamente a atuação legal para fazê-lo.

Sendo assim, a atuação nos litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana deve perpassar, necessariamente, pelo prisma do Promotor de Justiça especializado com atribuição na área urbanística, pois a análise dessa intervenção tangencia a política pública relacionada ao direito à moradia, direito socialmente garantido ao cidadão, no caso de terra urbana, ou ao interesse na reforma agrária, no caso de terra rural.

Outrossim, há que se fazer uma breve análise do que significa a expressão “litígios coletivos” para melhor delimitar o alcance da intervenção do Ministério Público nessas lides.

Para Mafra Leal existem duas espécies de ações coletivas no direito brasileiro: uma destinada à proteção dos direitos difusos e outra para a dos direitos individuais tratados processualmente sob a perspectiva coletiva.[1]Afirma ainda que “a história da ação coletiva se desenvolve com a necessidade de institucionalização de conflitos envolvendo comunidades e grupos intermediários, sem adequada representatividade política ou jurídica (obra cit, p. 183)”.
Kazuo Watanabe, por sua vez, admite a ação coletiva passiva, trazendo, dentre inúmeros exemplos, o caso de ser ré “uma associação de moradores do bairro que decidisse bloquear o acesso de automóveis a determinadas ruas.” (apud Grinover, 2002, p. 7).[2]
Verifica-se, pois, que a conceituação de litígios coletivos é bastante complexa, pois parte da doutrina só a admite no polo ativo, mas, sem dúvida, implica em conflito social, razão pela qual o legislador pretendeu chamar ao processo todos os órgãos públicos responsáveis pelas políticas agrária e urbana, que poderão, no curso dessa lide, reconhecer o interesse social ou público dessas áreas. Ainda assim, não há uma posição clara do que seriam esses conflitos coletivos. Pode-se entender, à luz do processo coletivo, como sendo aquelas hipóteses que versam sobre direitos coletivos strictu sensu ou os casos sobre direitos individuais homogêneos.
Há quem entenda, entretanto, que a expressão conflitos coletivos pode se referir às hipóteses de “ações possessórias em que figure no polo passivo grande número de pessoas, independentemente de se tratar de ação coletiva (passiva) ou de litisconsórcio multitudinário. Nesta última situação, o caso concreto (número de litisconsortes, impossibilidade de identificação individualizada deles, etc.) é que definirá a natureza coletiva do litígio possessório”. [3]
Conforme preconizam Susana Henriques da Costa e João Eberhardt Francisco, “embora o CPC indique que o Ministério Público participe em demandas possessórias na qualidade de fiscal da ordem jurídica e não na de substituto processual, na medida em que os réus serão citados, ainda que por edital, sua atuação realiza, sem dúvida, a função de defesa dos interesses daquele grupo de pessoas e, consequentemente, do interesse público que lhe é subjacente. Embora atuando como fiscal do ordenamento jurídico, caberá ao Ministério Público o papel de representante adequado da coletividade passiva, máxime nos casos em que essa coletividade não apresente condições fáticas de articulação e defesa judicial suficiente”.[4]
Em alguma medida, o novel artigo 554, parágrafo 1º, do atual CPC parece impor ao MP esse papel: “§1o No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública”. Sua função nesses processos, dentre outras, consiste na observância dos interesses transindividuais, podendo o MP buscar identificar os legitimados coletivos que muitas vezes são litigantes habituais e que já ostentam algum status de representatividade dessa coletividade. Em razão das características próprias dessas ações, não se pode dar a elas o tratamento processual individualista e tampouco o enfoque possessório tradicional, sendo certo que o novo código permite a não identificação dos réus na petição inicial (art. 319, §3º), o que se mostra necessário em algumas situações.
Susana Henriques da Costa e João Eberhardt Francisco defendem ainda que o papel de representatividade dessa coletividade passiva seja desempenhado pelo Ministério Público, ou pela Defensoria Pública se hipossuficientes as partes, pois “a técnica processual do processo coletivo, ativo ou passivo, portanto, transita em torno da noção de representatividade”.[5] Isso traria a garantia de que a coletividade se sujeitará ao quanto decidido no processo, pois devidamente ouvida e defendida.
Em conclusão, os litígios coletivos possessórios podem representar verdadeira introdução da defendant class action (ação coletiva passiva) em nosso direito processual, cuja sistemática visa assegurar a proteção dos interesses da coletividade que restará vinculada à sentença. Trata-se de normatização de prática que de algum modo já se acha incorporada em nossa jurisprudência, que vinha admitindo a propositura de ação possessória contra coletividade de pessoas não identificadas.
Portanto, é sem dúvida que a intervenção do MP nos litígios coletivos possessórios reveste-se de vital relevância social, sendo certo que a incumbência para atuação nessas ações, em razão da enorme complexidade das matérias envolvidas, deverá ser do Promotor de Justiça especializado com atribuições na área da habitação e urbanismo, pois exclusivamente a ele caberá, no caso de verificar descumprimento de políticas públicas voltadas ao direito de moradia, ou de outras, adotar as medidas necessárias para sua efetiva implementação, sem prejuízo de desempenhar, em alguma medida, o papel de representatividade da coletividade passiva dessas ações.
Para tanto, a par de sua intervenção como fiscal da ordem jurídica nesses litígios, poderá ele instaurar inquérito civil, requisitar documentos, informações, celebrar termo de ajustamento de conduta, dentre outras, ou ainda, se necessário, ajuizar ação civil pública para a finalidade de dar efetividade a essas políticas públicas.

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[1] LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Fabris, 1998.

[2] WATANABE, Kazuo et. al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto.7. ed., rev. e atual. até junho de 2001 Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

[3] Fernando da Fonseca Gajardoni, Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC/2015 (São Paulo: Método, 2016).

[4] Costa, Susana Henriques da, Eberhardt Francisco, João. Repercussões do Novo CPC, v. 6, p. 306 (Editora JusPodivm, 2015).

[5] cit. obra, p. 307.
Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.
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