16//11/2015

Por Wilson José Vinci Júnior e Luciana Vieira Dallaqua Vinci

Diferentes veículos da imprensa, sejam virtuais ou impressos, escritos ou falados, de diversas ideologias sociopolíticas, trazem como matéria de capa a tão discutida “crise econômica”, de consequências terríveis para a população em geral. Alguns economistas chegam a afirmar que vivemos o “pior cenário possível”, em um estágio de estagflação, que combina a estagnação econômica com a inflação elevada.

Dentro dessa perspectiva, muito se fala na alteração ou redução de certos direitos sociais, especialmente nas órbitas trabalhista e previdenciária, sob o argumento de que estes implicam em enormes gastos públicos que a economia brasileira não poderia suportar nesse momento de fragilidade.

Cabe relembrar que o Estado Social tem como marcos históricos a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. É uma nova etapa de um movimento denominado “constitucionalismo”, que começou muito tempo antes, mais precisamente com a Constituição Americana de 1787 e a Constituição Francesa de 1791, por meio do qual a Constituição passou a exercer papel central nos vários ordenamentos jurídicos existentes.

Os direitos fundamentais, que nada mais são do que direitos humanos constitucionalizados, são usualmente classificados em três dimensões ou gerações, seguindo o lema da Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade.

A primeira dimensão acomoda os direitos de liberdade, isto é, os direitos de defesa do cidadão contra o abuso do poder estatal. São os chamados direitos civis e políticos, que exigem uma omissão ou abstenção estatal para serem implementados (exemplo: é dever do Estado não torturar, respeitar a propriedade privada, respeitar a intimidade etc). É de se lembrar que o Estado é um ente abstrato que se relaciona com os seus súditos verticalmente, uma vez que se encontra em posição de supremacia frente a estes últimos. Esta posição de supremacia é que lhe permite determinar o comportamento das pessoas no seu território (poder estatal). Se esse poder não fosse limitado pelos direitos fundamentais presentes em uma Constituição, obviamente o governante da ocasião tenderia a abusar de sua prerrogativa.

Percebeu-se, contudo, que garantir apenas direitos de liberdade do cidadão frente ao Estado não fez com que, na prática, a sociedade fosse menos injusta. Ao contrário: o Estado Liberal puro de antigamente é repleto de exemplos de iniquidades. Assim, para conferir maior igualdade material às pessoas é que surgiram os direitos sociais, buscando corrigir as desigualdades oriundas de um liberalismo exagerado. Seus expoentes são os direitos econômicos, culturais e sociais. Para serem implementados, exigem uma ação positiva estatal, ou seja, uma conduta proativa do Poder Público, a exemplo da efetivação dos direitos à saúde, educação, transporte, trabalho, moradia, previdência etc.

Finalmente, os direitos de terceira dimensão surgem especialmente após a Segunda Guerra Mundial, onde observou-se que o ser humano era capaz de matar outras pessoas sem qualquer justificativa plausível. Assim, de nada adiantaria que o Estado respeitasse os direitos de primeira e segunda dimensões se o homem detinha a capacidade de exterminar a sua própria espécie. Desta maneira, através dos direitos de fraternidade, compreendeu-se que o ser humano estava inserido em uma “aldeia global”, sendo que a conduta de uma pessoa pode influenciar positiva ou negativamente o bem-estar de toda a raça humana. A título de exemplo, uma poluição em determinado país pode prejudicar habitantes de um país vizinho, afinal, é cediço que a degradação ambiental não observa fronteiras geopolíticas.

Após a mencionada classificação de direitos fundamentais ganhar notoriedade, muitos doutrinadores começaram a afirmar que os direitos de primeira dimensão, por exigirem uma abstenção do Estado, seriam mais fáceis de serem implementados do que os direitos de segunda dimensão, que requerem uma conduta positiva do Poder Público. Associaram a abstenção do Estado com a suposta desnecessidade de gasto público para a sua efetivação, ao mesmo tempo em que relacionaram a necessidade de uma conduta proativa do Poder Público para a implementação dos direitos sociais com a essencialidade de se gastar dinheiro público.

Sem muito esforço, pode-se perceber que a argumentação não convence. Os direitos possuem custo, sejam de primeira, segunda ou terceira dimensão. Aliás, o Estado Social como um todo possui um custo, suportado pelo contribuinte. Seria ingenuidade sustentar o contrário.

O tema assume relevo em época de aperto financeiro, como a presente. Isso porque, ao menor sinal de dificuldade orçamentária do Estado, este promove alterações em diversos direitos sociais, a exemplo de direitos trabalhistas e previdenciários.

A alteração ou redução de um direito social não é completamente vedada pelo ordenamento jurídico. No entanto, há de se respeitar o princípio da proibição do retrocesso social: conquistado um direito social, este não poderia simplesmente ser suprimido sob a escusa de que não se tem condições financeiras para a sua implementação. Sua supressão, total ou parcial, somente seria admitida em hipóteses específicas, como, por exemplo, caso a sociedade tivesse atingido um patamar de evolução social que não mais justificasse a permanência de um direito assistencial por ausência de público-alvo ou, ainda, na hipótese em que a proteção ao direito fosse assegurada por outras maneiras. Em qualquer situação, porém, deve ser observado o respeito ao mínimo existencial.

Não se desconhece que existe um grande número de fraudes em certas áreas e que alterações legislativas são bem-vindas para combatê-las. Contudo, a alteração das regras de concessão dos direitos sociais deveria passar antes pela estruturação dos órgãos estatais incumbidos de detectá-las e coibi-las. Nesse sentido, é notório que muitos órgãos públicos, em diferentes esferas governamentais, estão verdadeiramente sucateados, o que impossibilita a boa prestação de serviço público.

Também não se verifica a mesma agilidade governamental para reduzir os gastos públicos em setores tradicionalmente utilizados como “moeda de troca” política, a exemplo dos milhares de cargos em comissão e das dezenas de ministérios e secretarias que poderiam muito bem ter as suas atribuições absorvidas por outros órgãos da própria Administração Central. Em outras palavras, o “ajuste fiscal”, acaso necessário, deve atingir a todos, governantes e governados.

Portanto, não se advoga uma absoluta impossibilidade de alteração das regras atinentes aos direitos sociais. Todavia, isso deveria ocorrer como ultima ratio: somente após esgotados todos os esforços do Estado para a redução de gastos públicos é que se poderia admitir a alteração legislativa de direitos duramente conquistados. Essa solução, além de respeitar o aspecto jurídico concernente à proibição do retrocesso social, certamente gozaria de maior legitimidade junto à população, que entenderia que o Poder Público, antes de alterar as “regras do jogo” dos direitos sociais, fez todo o esforço possível para manter a casa em ordem, cortando gastos em setores que não impactam diretamente no bem-estar da sociedade.

Wilson José Vinci Júnior é procurador federal, membro da Academia Brasileira de Direito do Estado (ABDET) e mestrando em Direito pela PUC-SP.

Luciana Vieira Dallaqua Vinci é promotora de Justiça, membro do Ministério Público Democrático (MPD) e da Academia Brasileira de Direito do Estado (ABDET), além de mestranda em Direito pela PUC-SP.