29/02/2016

Por Gustavo Roberto Costa

O ano é 2004, mês de fevereiro. Por volta de 07h00, um crime bárbaro e chocante acontece. Um senhor é morto por três, quatro, talvez cinco indivíduos, que disparam diversas vezes contra ele, na porta de sua casa, quando saía para trabalhar. Falece ainda no local. No dia anterior, a vítima participara como testemunha de uma audiência no Fórum Criminal da cidade, onde apontou os dois possíveis homicidas de seu filho, também assassinado cerca de um ano e meio antes. História das mais tristes.

Logo se faz uma relação entre os crimes, e algumas diligências indicam que o réu do primeiro processo, preso, organizara e ordenara a morte da testemunha, em razão de seu depoimento em juízo. Além do possível mandante, quatro rapazes são apontados como autores do crime: dois maiores e dois menores. No feito criminal, é decretada a prisão preventiva dos três denunciados.

Um dos réus, preso em agosto de 2005, requer e obtém o desmembramento do feito. É julgado em abril de 2008 e condenado pelo Egrégio Tribunal do Júri à pena de 15 anos de reclusão. A defesa apela. No recurso, alega que a decisão do conselho de sentença é manifestamente contrária à prova dos autos.

Já em fevereiro de 2011, um diligente advogado (hoje falecido) comunica ao desembargador relator da apelação que os outros dois réus – inclusive o autor intelectual do crime – foram absolvidos pelo Tribunal do Júri. Em outubro do mesmo ano, a câmara julgadora dá provimento ao recurso, anula o primeiro julgamento para que outro seja realizado e determina que o alvará de soltura seja imediatamente expedido – após mais de seis anos do cumprimento do mandado de prisão preventiva contra o réu.

O Promotor de Justiça responsável pelo segundo plenário analisa minuciosamente os autos. A seu ver, as provas são precárias, contraditórias, frágeis. Não autorizam o pedido de condenação ao júri.

Uma das testemunhas de acusação, que no inquérito policial afirmara ter visto o réu atirar já havia se retratado em juízo – possivelmente por medo – antes mesmo do primeiro julgamento. A outra, esposa da vítima – e que, portanto, perdera filho e marido assassinados – apresenta uma versão diferente a cada vez que se manifesta nos autos. Cita o nome do réu – o qual já conhecia – pela primeira vez somente 9 meses depois do crime, embora tenha sido inquirida no mesmo dia e não mencionado nada sobre ele. As ambiguidades são imensas (incabíveis nesse curto espaço de reflexão). Talvez pelos traumas irreparáveis que sofreu, estivesse a testemunha muito mais procurando culpados pela morte de seus familiares do que dizendo o que de fato viu no fatídico dia – algo absolutamente compreensível.

Por outro lado, o réu nega veementemente a participação no crime. Diz que estava com a esposa e filhos no momento do fato, versão confirmada por duas testemunhas, cujos depoimentos foram totalmente ignorados durante quase todo o processo, mas utilizados no voto condutor do julgamento que deu provimento ao recurso da defesa.

Na sessão plenária, o Promotor postula a absolvição do acusado, expondo aos jurados que a condenação somente pode se basear em provas firmes, seguras, que apontem inequivocamente a culpabilidade do réu, circunstância, no seu entendimento, inexistente no caso.

Quando o juiz lê a sentença absolutória, o acusado não contém as lágrimas. Estava finalmente livre das amarras de um processo criminal longo e doloroso – principalmente em razão dos 6 anos que aguardou a decisão final preso preventivamente. Absolvido, poderia, enfim, seguir sua vida, certamente incapaz de esquecer o que passou no cárcere, mas com a certeza de que, por conta desse crime, para lá não mais voltaria. O Promotor – embora penitenciado – se alegra muito mais que em qualquer condenação que já tenha obtido.

Se foi um dos culpados pelo crime, já havia o (agora não mais) réu cumprido grande parte da pena em regime fechado. Mas e se era mesmo inocente, como pareceu ao Promotor de Justiça?…

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD e do Movimento LEAP-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition.

Foto: Justificando