A Justiça e as sandálias da humildade

 

 

Para defender a igualdade de todos perante a lei, nós, da Justiça, não temos o direito de achar que estamos acima da lei nem que somos deuses

 

 

Desde o Tribunal da Relação na Bahia, em 1609, o MP (Ministério Público) no Brasil passou por profundo processo de transformação, cujo marco histórico é a Constituição Federal de 1988, que o coloca na posição de defensor da ordem jurídica e do regime democrático.

 

 

Era o protetor do Estado e hoje é o principal organismo defensor da sociedade, inclusive investindo contra o próprio Estado quando este a desrespeita, e, por essa feição independente, muitos o chamam de quarto Poder.

 

 

Recentemente, tive a oportunidade de falar aos novos promotores de Justiça substitutos do Estado do Piauí durante o curso de adaptação, que precede o início do exercício funcional. Às tantas, perguntaram o que seria mais importante levar na mala para a nova comarca. Respondi sem titubear: as sandálias da humildade.

 

 

O exercício do poder exige extrema prudência, espírito público e humanista, equilíbrio, serenidade, ética, mas, acima de tudo, simplicidade e humildade. Para defender a igualdade de todos perante a lei, nós, da Justiça, que servimos ao povo, não temos o direito de nos achar acima da lei. Não podemos achar que somos deuses.

 

 

Na Suécia, por exemplo, perguntar “você sabe com quem está falando?” caracteriza crime. Isso ocorre na mesma Suécia em que vigora Lei de Acesso à Informação Pública desde 1766 (a do Brasil é de 2011) e que há anos figura no topo do controle da corrupção, segundo a Transparência Internacional.

 

 

Temos que endurecer quando necessário para a defesa do interesse público, mas sem jamais perder a ternura de enxergar e respeitar o ser humano que processamos, do qual não temos o direito de nos vingar. Ele pode ter transgredido a lei, mas não deve ser visto como inimigo.

 

 

Na área criminal, o promotor de Justiça é o defensor de toda a sociedade, que espera ver o crime investigado e punido, na sua medida exata se comprovada a culpa. Devemos buscar a verdade. Dentro do contraditório, respeitado o devido processo legal, o réu e o advogado ou defensor público que o representa.

 

 

O promotor de Justiça dos tempos modernos ouve atentamente o povo que representa no atendimento cotidiano e nas audiências públicas que promove para estabelecer prioridades de atuação. Dialoga. Não se esconde da imprensa –presta contas do que fez, sem exibicionismo e sem assassinato de reputações.

 

 

A Constituição, afinal, consagra o princípio da publicidade, instrumento garantidor da transparência, que não pode jamais se transformar em agente para a destruição da imagem de investigados ou réus.

 

 

O Ministério Público respeita o magistrado sem ser subserviente a ele. Assim como respeita o advogado, o defensor público, o delegado de polícia. Não é melhor nem pior que nenhum deles. Entende perfeitamente que cada um cumpre seu papel dentro do sistema de Justiça.

 

 

Esse MP é estrategista. Emite recomendações visando a prevenção, não demoniza políticos e difunde a cultura de paz. Prioriza a mediação dos conflitos e busca construir o entendimento e a celebração de termos de ajustamento de conduta na defesa do meio ambiente, dos consumidores, dos fracos e oprimidos, das crianças e jovens, idosos, pessoas com deficiência, dentre tantos papeis que desempenha.

 

 

Mas, sempre que necessário, investiga e processa os violadores da lei, especialmente aqueles que desrespeitam o patrimônio público, já que, certamente, o combate implacável à corrupção é uma das maiores expectativas sociais em relação à atuação do Ministério Público.

 

 

Hoje, dia do Ministério Público de São Paulo, em que se comemoram os 21 anos da Lei Orgânica do Ministério Público no Estado, é dia de relembrar a gravidade da nossa missão. E de cumpri-la todos os dias com seriedade, humildade e coragem!

 

 

ROBERTO LIVIANU, 46, promotor de Justiça em São Paulo, é doutor em direito pela USP e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático