O Brasil diante da apropriação do bem público
O jurista Modesto Carvalhosa afirma, nesta entrevista à MPD Dialógico, que a quebra da interlocução direta entre agentes estatais e particulares é um dos caminhos para coibir atos de apropriação privada do bem público e corrupção. O advogado também discorre sobre o papel da administração pública tem desempenhado para proteger empresas envolvidas em escândalos e como o Ministério Público brasileiro, a Polícia Federal e o Poder Judiciário estão fortalecidos no combate ao ilícito.
“O capitalismo das relações é a razão porque o Brasil não tem competitividade internacional, sendo um país em que o empresário só prospera no plano da troca de favores que obtém junto aos atores do estado”.
“A única maneira de se realmente prevenir a corrupção, no plano dos fornecimentos públicos e das obras publicas, é quebrar a interlocução entre o governo, os agentes governamentais e os contratados e fornecedores”.
“É um problema muito complexo o de melhorar a qualidade dos políticos no Brasil. A reforma política é um dos caminhos para se melhorar a questão, bem como a mobilização da sociedade civil”.
“O papel do Ministério Público tem sido excepcional nesse momento e que demonstra, não só vontade de exercer um papel autônomo de combate à corrupção, mas de uma capacidade técnica de investigar muito grande”.
“Há um caminho enorme de redenção dos costumes políticos no Brasil. O trabalho do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e dos Tribunais precisa ser prestigiado pela sociedade cada vez mais. Até porque a grande esperança brasileira no combate e controle da corrupção se encontra nestas instituições”.
Ao analisar a Década de 2010, os historiadores poderão defini-la como um período em que a corrupção foi tema recorrente das principais manchetes do Brasil. Do Mensalão à Lava Jato, o país se depara com uma série de escândalos que chega ao ponto de muitos não serem mencionados nos grandes veículos de comunicação. Assim, o povo vê uma sucessão de acontecimentos que revelam prejuízos financeiros bilionários à sociedade. O cidadão, mesmo sem acesso a vários tipos de informação, demonstra compreender, de certa maneira, que o bem público está sendo apropriado a partir de posturas políticas que, aplicadas à esfera administrativa, permitem o uso de recursos pertencentes à todos para atender interesses particulares. Tal conduta é responsável por corroer a forma como a concessão pública é feita e como esta prestação de serviços retorna à sociedade. São licitações com propósitos duvidosos, contratos caracterizados pela ocorrência de aditivos que superfaturam o valor inicial e má utilização dos recursos públicos sem haver devido processo para prevenir o fato. Enquanto isso, as investigações criminais conduzidas por integrantes do Ministério Público de todos os estados brasileiros demonstram a existência de processos de corrupção em áreas vitais para a garantia do bem estar social como segurança, saúde, educação e transporte.
Para expor seus pontos de vista sobre a apropriação privada de bens públicos e como isto é celebrado por meio da corrupção e concussão, o jurista Modesto Carvalhosa conversou com a Revista MPD Dialógico. Autor de livros de referência na área de Direito como “O Livro Negro da Corrupção” e, o mais recente, “Considerações sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas”, compreende que esta prática da corrupção é facilitada por meio de um relacionamento promíscuo entre agentes públicos e privados. O advogado endossa o conceito desta relação como sendo um capitalismo clientelista, ou capitalismo de laços conforme definição do professor Sérgio Lazzarini no livro “Capitalismo de Laços: os donos do Brasil e suas conexões”. Um fenômeno que permite a cooptação do sistema político, de empresas nacionais e estrangeiras, grupos econômicos domésticos, bem como do governo e entidades públicas. Os resultados das ilegalidades são as transferências de riquezas para alguns em detrimento de toda a sociedade. Para o jurista, o controle eficaz para a diminuição das taxas de corrupção demanda a quebra da interlocução direta entre administração pública e empresas participantes de processos licitatórios de obras e serviços públicos. Este rompimento seria possível com a adoção da prática conhecida mundialmente como performance bond, uma espécie de seguro contratual que garante o prazo, serviço e qualidade na execução de obras, bem como indeniza o Estado em caso de descumprimento do contrato. Carvalhosa ainda considera que a população brasileira deve se desapegar do entendimento de que a apropriação privada do bem público e demais atos de corrupção são endêmicos no Brasil, e possivelmente, problemas sem solução. Igualmente afirma que esta compreensão comum se equivoca tanto ao dizer que o país sempre foi corrupto quanto ao analisar o problema somente a partir de dados históricos.
Estes pontos demonstram tanto que há um cenário vantajoso para a prática de malversação do bem público quanto reforça a necessidade de que esta situação seja modificada. Diante da quantidade de escândalos, manifestações diversas de que a corrupção seria admissível no Brasil, fazendo-se aceitável dentro do costume social. É nesta linha que poderia se desenvolver um raciocínio sobre inversão de valores sociais na cultura brasileira. Por exemplo, quando se chega ao nível em que uma agente de trânsito é processada e condenada, por suposto desacato, ao cumprir seu dever em multar um juiz que circulava num carro sem os devidos documentos de licenciamento e placas de identificação do automóvel. Uma inversão de valores passível de ser correlacionada ao discurso de intolerância e ódio que conduziria o povo numa luta política do “nós contra eles” da qual o futuro da nação poderia ser comprometido conforme diz o filósofo Roberto Romano em entrevista à MPD Dialógico n.46. Para se apropriarem do bem público, atores públicos e privados encontram um cenário favorável para atos de corrupção e sentem-se nitidamente confortáveis e aptos a desrespeitarem a Carta Magna, a legislação vigente e praticarem ilícitos em prol de benefícios mútuos. Isto tendo em vista que os agentes da corrupção podem possuir claro conhecimento de como operar esquemas a seu favor, mesmo sob a possibilidade de condenação posterior e devolução dos valores financeiros desviados.
O nível de conforto poderia ser constatado quando acusados de cometerem crimes contra a administração pública, mesmo que processados e condenados, tendem a continuar na operação de atividades ilegais durante ou após o cumprimento da pena estabelecida pela Justiça. Esta tranquilidade para o exercício do crime poderia ser pensada a partir de um tripé favorável às práticas criminosas composto por oportunidade, meio e análise de risco. Um possível exemplo seria a descoberta de pré-sal no litoral brasileiro que abrira as portas para desvio de recursos por meio da criação de empresas fraudulentas ou de licitações comprometidas. A análise de risco, neste caso, se constitui na possibilidade de revelação do esquema e o enfrentamento de um processo judicial. No entanto, mesmo com condenação e devolução de parte de recursos, haveria ainda a possibilidade de cumprir a pena e manter parte do montante desviado. Como seria o caso da ex-procuradora previdenciária Jorgina de Freitas, líder de uma quadrilha acusada de desviar cerca de R$ 350 milhões das verbas de aposentadoria do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) no início da década de 1990. Em 1997, a ex-advogada foi condenada a 14 anos de prisão, cumpridos até 2010, e, atualmente, vê suas 57 propriedades serem leiloadas pouco a pouco para ressarcir o erário em R$ 200 milhões. De acordo com a Advocacia-Geral da União (AGU), apenas R$ 156 milhões foram recuperados para os cofres públicos de um rombo avaliado em mais de R$ 1 bilhão em valores corrigidos atualmente.
Já em 2011, o senador José Sarney (PMDB-AP) utilizou um helicóptero da Polícia Militar do Maranhão, adquirido por R$ 16,5 milhões para assistência médica e combate ao crime, para realizar uma viagem particular com a família e amigos, por duas vezes em junho daquele ano, à Ilha de Curupu. De acordo com a Folha de São Paulo, responsável por tornar o caso público, a assessoria do então presidente do Senado informou que Sarney se sentia no direito ao transporte de representação em todo o território nacional, tendo viajado na aeronave a convite da governadora do Estado na época, sua filha Roseana Sarney. Embora a Lei de Improbidade Administrativa proíba o uso de veículos públicos em obra ou serviço particular, nenhum tipo de punição prevista na lei, como perda da função ou suspensão dos direitos políticos, foi dada aos envolvidos.
A corrupção no Brasil
Os cidadãos brasileiros acompanham diariamente os desdobramentos das operações realizadas pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal para desmontar esquemas ilegais. Investigações que demonstram o fortalecimento da Polícia Judiciária e das instituições incumbidas de processar criminalmente os envolvidos em escândalos. Com maior repercussão, a Lava Jato ocupa as manchetes dos noticiários nacionais e, periodicamente, chegam a ganhar certo destaque nos principais veículos de comunicação do mundo. Somente esta operação foi capaz de recuperar quase R$ 2 bilhões aos cofres públicos e bloquear outros R$ 2,4 bi em bens de réus investigados no escândalo que envolve a Petrobrás até o final de 2015. A investigação resultou na celebração de 39 acordos de colaboração premiada, 35 ações penais contra 173 pessoas e cinco ações de improbidade. Com isso, foram obtidas 63 condenações criminais que totalizam 501 anos de prisão para os acusados. No entanto, é apenas um exemplo do rol de casos que integram uma série de atos ilícitos e irregularidades, praticadas por políticos, empresários e outros facilitadores, capaz de gerar perdas bilionárias à nação e prejudicar a economia.
No Dia Internacional de Combate à Corrupção, em 9 de dezembro de 2015, a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou, durante evento em Brasília-DF, que o MPF investiga atualmente cerca de 26,3 mil casos de corrupção em todo o país, dados que não contemplam os MPs de cada estado brasileiro. Os números coletados até o final de novembro último também indicam que o MPF propôs mais de 2 mil ações judiciais relativas à matéria sendo que, dessas, foram ajuizadas aproximadamente 1.229 ações civis de improbidade administrativa e outros 901 processos penais. Na época, o subprocurador-geral da República e coordenador da Câmara de Combate à Corrupção do MPF, Nicolao Dino, declarou que há uma trágica certeza de que a corrupção, além de ser fator de atraso social e econômico, inviabiliza a promoção dos direitos fundamentais dos cidadãos. “Portanto, é um fenômeno de altíssimo potencial destrutivo. Corrupção, como tantas vezes tem sido repetido, corrupção mata”. Conforme diz, não se deve supor que a corrupção será erradicada porque, como mal social, a sombra de sua presença sempre estará presente no dinamismo da vida em sociedade. Mas, em seu entendimento, o país vive um momento plural em que a história reservou aos personagens da sociedade de hoje o enorme desafio de oferecer as respostas adequadas que permitam um patamar mais favorável ao controle do fenômeno. Ainda acrescentou que a atividade revisional da 5ª Câmara do MPF demonstra que a instituição exerce as atividades persecutórias com rigor e critério para evitar a banalização dos instrumentos repressivos. Dos 12.200 pedidos de arquivamento de procedimentos investigatórios remetidos ao órgão, 11.992 foram analisados, 7.282 arquivados e 1.874 tiveram a competência declinada para atuação dos MPs estaduais.
Por outro lado, o subprocurador-geral da República fez questão de ressaltar que, em uma década, o país despencou da 45ª para 72ª posição no ranking de percepção da corrupção divulgado pela Transparência Internacional. A posição piorou no anúncio realizado pela organização em janeiro deste ano, quando aparece na 76ª colocação dos 168 países pesquisados. O Brasil aparece à frente de outros países da América do Sul como Colômbia (83º), Peru (88º), Bolívia (99º), Argentina (107º), Paraguai (130º) e Venezuela (158º), mas fica longe de Uruguai (21º) e Chile (23º). Numa análise prévia, Nicolao Dino acredita que a queda pode ser compreendida pelo recrudescimento de fatos configuradores da corrupção no país e ainda significar que o ambiente democrático assegura a atuação das instâncias de controle e responsabilização, bem como o livre acesso à informação. Segundo diz, os dois fatores em conjunto poderiam propiciar à sociedade melhor percepção sobre o tema. “Seja como for, é indiscutível que a corrupção é um fenômeno ainda muito presente no cotidiano de nosso País, desafiando, pois, a todos – setores público e privado – no sentido de adotar medidas adequadas e eficazes de contenção e responsabilização”.
Mesmo com a regulamentação da Lei Anticorrupção e de grandes testes de sua aplicação, como nos desdobramentos da Operação Lava Jato, a Transparência Internacional destaca que o Brasil ainda necessita ampliar as ações de combate às práticas ilegais também em âmbito internacional. Segundo a organização, o Brasil ainda não “adotou e implantou leis que estabeleçam a responsabilidade corporativa para atividades corruptas, incluindo subornos internacionais e enriquecimento ilícito”. Por outro lado, o relatório anual da ONG Open Knowledge (Conhecimento Aberto em português) afirma que o Governo Federal do Brasil divide a liderança mundial sobre a transparência de informações sobre os investimentos e gastos em 2014 com outros 16 países. Nesta pesquisa, o país se encontra ao lado de Estados Unidos, Alemanha, Holanda, França, Reino Unido, Itália e, da América do Sul, Chile e Uruguai. O índice analisa os dados orçamentários planejados para futuras despesas e não é relativo a investimentos anteriores e, no ano anterior, o primeiro do estudo, o Brasil ocupava a 34a posição do mesmo relatório.
Não obstante, corrupção é o problema que mais preocupa os cidadãos segundo a pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) no final de janeiro de 2016. De acordo com o levantamento, a corrupção ocupava, em 2012, o quarto posto no índice (com 58%) e, no estudo realizado em dezembro do ano passado, passa à liderança com 65%. Isso significa que quase 7 a cada 10 brasileiros percebem os atos de improbidade administrativa e de crimes contra a administração pública como problema atual mais grave que violência ou drogas. No entanto, o trabalho indica que a mesma compreensão se reflete parcialmente quando os entrevistados elencam as prioridades para este ano. O combate à corrupção aparece somente em terceiro lugar (26%) e à sua frente estão a melhora dos serviços de saúde (36%) e o controle da inflação (31%). Contudo, os dados da pesquisa afirmam que o entendimento do brasileiro a respeito da priorização ao combate e controle da corrupção cresceu, pelo menos, nos últimos três anos. Temas correlacionados, a lentidão da Justiça e a impunidade também cresceram na preocupação do brasileiro desde 2012 e, no último índice, são apontados como quarto maior problema do país de acordo com 51% dos pesquisados.
A indignação com os níveis de corrupção foi um dos motivos que teria reunido cerca de um milhão de pessoas, somente na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, na manifestação popular do dia 15 de março de 2015. A data coincidiu com os 25 anos exatos da posse de Fernando Collor, primeiro presidente eleito por voto direto após o fim da Ditadura Militar e que, dois anos e meio depois, renunciou ao cargo para evitar o impeachment por envolvimento em ilegalidades. De acordo com o Museu da Corrupção, o esquema coordenado por Paulo César Farias, tesoureiro da campanha do então presidente, foi responsável por desviar cerca de R$ 15 milhões dos cofres públicos. A manifestação teve como um dos principais motivos a própria Lava Jato, tida pelo Ministério Público Federal como a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o país já teve. Operação iniciada em março de 2014 e que tem seu nome inspirado no uso da rede de postos de combustíveis e lava a jato de automóveis para movimentar recursos ilícitos, num montante previsto em bilhões de reais.
Ao se tratar de valores financeiros desviados em ilegalidades, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) estima que a corrupção é responsável por desviar cerca de R$ 200 bilhões por ano no Brasil. Este número é praticamente o triplo do prejuízo econômico apontado por dados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), divulgados há cinco anos, que indicavam um custo médio anual de R$ 41,5 a R$ 69 bilhões à sociedade. Na época, o valor representava de 1,38% a 2,3% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Segundo a Fiesp, o dinheiro poderia ser utilizado para incluir mais 16 milhões de jovens e crianças na rede pública de ensino fundamental e aumentar em 89% a quantidade de leitos em hospitais públicos do SUS e aumentar em 74,3% o número de moradias populares. Bem como fazer crescer em 104% o serviço de saneamento no país e expandir a infraestrutura para transportes.
Outra pesquisa também realizada pela CNI afirma que cada R$ 1 desviado em irregularidades equivale a perda de R$ 3 tanto nos setores econômicos brasileiros quanto para a sociedade. Isto significa que se o valor total repatriado somente pela Operação Lava Jato até o momento, estimado em cerca de R$ 1 bilhão, for multiplicado por três, o montante seria de aproximadamente R$ 3 bilhões. Mas se for considerado o valor anual calculado pelo PNUD, a quantia chegaria a R$ 600 bilhões – soma equivalente a 11% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2014. Em nível mundial, a corrupção movimenta U$ 3 trilhões (R$ 11,6 tri) anualmente para o “uso indevido de um poder confiado, quase sempre motivado pela ganância conforme define a Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com o PNUD, a cada R$ 4,7 trilhões investidos no sistema de saúde mundial, cerca de R$ 260 bilhões são perdidos em desvios e fraudes. Somente o crime de suborno detém R$ 1 trilhão do total e os custos da corrupção na União Europeia chega a U$ 120 bilhões (R$ 462,3 bi). A própria ONU reconhece que, além dos danos para a economia local e global, os atos de corrupção comprometem o desenvolvimento da sociedade, tornam os serviços básicos ineficientes, prejudicam os mais carentes e favorecem os crimes contra o meio ambiente.
Escândalos na educação
Para o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), os prejuízos da corrupção são percebidos, principalmente, nos serviços de educação, saúde, acesso a água potável, saneamento básico e à habitação. O UNODC afirma que o sistema educacional está repleto de exemplos de corrupção como a fraude acadêmica, considerada uma grave ameaça à integridade e à autenticidade dos diplomas de ensino superior. No entanto, destaque que as licitações no setor da educação comumente custam caro para a população. Assim, o mal uso do dinheiro público é visto em processos licitatórios que envolvem a construção de edifícios escolares, falsos custos de manutenção e pagamento de livros didáticos que não chegam às mãos dos alunos. O órgão também não isenta a lista de professores “fantasmas” que, por constar como “ativos” nas escolas, estão presentes, com grande peso, na folha de pagamento do funcionalismo público.
A legislação brasileira, ao tratar do direito à educação, assegura o atendimento a outras necessidades básicas para que crianças e adolescentes possam cumprir integralmente os estudos iniciais. A Lei prevê que todo aluno de escola pública tem o direito à alimentação de qualidade como disposto no artigo 208 da Constituição Federal e no artigo 54 do Estatuto da Criança do Adolescente (ECA). Ambos os textos também garantem que é dever do Estado o atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático, transporte escolar, alimentação e assistência à saúde. Quando se trata de merenda escolar, uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que a alimentação nas escolas é a refeição principal diária de 40% dos alunos do ensino público – o que pode representar a única refeição de muitas dessas crianças. O levantamento igualmente aponta que o índice cresce se regionalizado para, por exemplo, 56% dos estudantes da Região Norte e 50% dos alunos do Nordeste. No entanto, boa parte dos alunos é prejudicada constantemente pelos desvios de recursos públicos que deveriam ser destinados para a alimentação escolar de qualidade. De acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU), cerca de R$ 2 bilhões foram desviados de recursos destinados à educação e ao transporte escolar desde 2003 até o final de 2015. O valor reflete somente a fiscalização realizada em 2,7 mil municípios do país, o que representa praticamente a metade das cidades brasileiras.
Ao longo dos anos, casos investigados tanto pelo MPF quanto MPs estaduais tratam, comumente, de desvios de recursos para merenda, material escolar e uniforme. Mesmo diante a inquéritos e processos judiciais, não é estranho que essas ilegalidades voltem a ocorrer na mesma cidade. Por exemplo, o MPF de Sergipe investigou as irregularidades na licitação de mais de R$ 350 mil destinados à merenda escolar do município de São Cristóvão, cidade da região metropolitana da capital Aracaju e que tem 85 mil habitantes. Cerca de 19 pessoas foram acusadas de participar do esquema que utilizou indevidamente, entre 2003 e 2004, as verbas provenientes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Educação de Jovens e Adultos (EJA). O MPF apontou na investigação alguns problemas de distribuição, armazenamento e qualidade dos alimentos, retirada da Prefeitura de documentos referentes à aplicação das verbas e dispensa ilegal de licitação e simulação de processos licitatórios. Em 2015, o ex-prefeito da cidade, Armando Batalha, tido como um dos principais articulistas do esquema e acusado de desviar cerca de R$ 1,2 milhão, foi absolvido pela 3ª Vara Criminal da Justiça Federal do Estado. No mesmo ano, São Cristóvão viu história semelhante se repetir com a então prefeita Rivanda Batalha, esposa do ex-prefeito, que chegou a renunciar ao cargo em junho após ser acusada de receber proprina em supostas fraudes nas licitações para a merenda escolar. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara de Vereadores local entregou em janeiro de 2016 o relatório que pede o indiciamento civil e criminal da ex-prefeita por superfaturamento, formação de cartel com conivência do gestor e pagamento antecipado de faturas sem a devida entrega dos produtos às escolas públicas da rede municipal. Até o fechamento desta edição, o MPF e o MPE-SE continuam investigando estas denúncias que também envolveriam empresários e servidores públicos e se estenderiam a quase trinta municípios do estado.
Prevenção de ilegalidades
A quebra da interlocução direta entre o poder contratante e fornecedores de serviços públicos é o caminho sugerido pelo jurista Modesto Carvalhosa para maior prevenção e controle das práticas de corrupção e malversação do bem público. Especialista nos estudos sobre corrupção, o advogado recebeu a MPD Dialógico para abordar causas e possíveis soluções para o problema. Na década de 70, foi um dos atores do Livro Negro da USP, publicação que denunciou as ações de aliados do Regime Militar na maior universidade pública brasileira, a Universidade de São Paulo (USP). Já nos anos 90, foi integrante da comissão Especial de Investigação criada pelo então presidente Itamar Franco em decorrência do escândalo conhecido como Anões do Orçamento – caso que apurou o envolvimento de 37 parlamentares em fraudes orçamentárias no Congresso Nacional. Como resultado do trabalho, o advogado redigiu o Livro Negro da Corrupção que trouxe propostas para prevenção e combate aos atos ilícitos com dinheiro público.
Modesto Carvalhosa foi perguntado sobre que tipos de instrumentos faltam para impedir que a corrupção seja percebida com uma dimensão elevada de ilegalidades nas quais agentes públicos se aliam a civis para usurpar do bem público. O jurista argumenta que é necessário criar elementos estruturais que possam modificar, por exemplo, os contratos estabelecidos entre os agentes públicos e privados. Como exemplo, sugere a adoção de um modelo semelhante à experiência norte-americana que, desde 1897, coíbe a existência do capitalismo clientelista. Isto ocorre por meio da aplicação do performance bond, uma espécie de seguro de desempenho de contrato e que consiste, em matéria de obras e de serviços públicos, utilizar uma seguradora para mediar a contratação entre os agentes do governo e o setor privado. Assim, todos os contratos, não importando o tamanho da construção, passam por uma seguradora que deve garantir a qualidade, o prazo de entrega e o preço da obra e, caso isso não ocorra, precisará ressarcir o Estado. “Portanto, a única maneira de se realmente prevenir a corrupção, no plano dos fornecimentos públicos e das obras públicas, é quebrar a interlocução entre o governo, os agentes governamentais e os contratados e fornecedores”.
O advogado acredita que este modelo adotado pelos Estado Unidos permitiu às empresas se voltarem para a competitividade e evitarem a participação em esquemas ilícitos como no escândalo da Petrobrás investigado pela Lava Jato, conforme compara. Mas, ao considerar uma quantidade relevante de políticos possa representar interesses particulares e não fazer a correta gestão do bem público, o jurista compreende que uma medida como o performance bond só poderia ser aplicada se houvesse melhoria na qualidade da classe política eleita no país. Para o jurista, algo possível com a mobilização da opinião pública, de entidades e da sociedade civil e de outras mudanças, como a criação do voto distrital puro para que o deputado seja vinculado aos eleitores. “É um problema muito complexo o de melhorar a qualidade dos políticos no Brasil. A reforma política é um dos caminhos para se melhorar a questão, bem como a mobilização da sociedade civil”.
Relacionamento entre agentes públicos e privados
Carvalhosa afirma que há um costume equivocado de se relativizar a prática de ilícitos no país. Segundo diz, é tão errôneo somente estudar as ilegalidades a partir de dados históricos quanto afirmar que o Brasil é um país que sempre foi corrupto. “Esta é uma forma de análise metodológica que não leva a um diagnóstico efetivo das razões modernas e atuais da corrupção e nós precisamos saber como a corrupção ela existe no mundo atual dentro das regras econômicas e sociais atuais.” No entanto, relembra que a apropriação privada dos bens públicos pode ser remontada historicamente à Renascença, quando o mercantilismo se expande e os conceitos sobre estados modernos se consolidam. Conforme relembra, é neste período em que os privilégios dos grupos até então dominantes são rompidos e se estabelece a separação entre o público e o privado. “Até então não havia distinção entre o bem público e o particular. Se criou uma ética renascentista de que o particular não podia se apropriar do bem público. Ali, se tem a origem do problema e a compreensão do que realmente é a corrupção que, portanto, é um crime a partir desse momento histórico.” Segundo ressalta, este é um valor que teria permeado o mundo ocidental desde então, mas que, mesmo no Século XXI, ainda não se estabeleceu em países predominantemente teocráticos.
Em seu entendimento, o advogado considera importante a compreensão de que o conceito de apropriação privada de bens públicos está intimamente ligado ao entendimento de crony capitalism (capitalismo clientelista). Conforme explica, o termo, originado na teoria política inglesa, descreve uma espécie de economia primitiva na qual as relações estabelecidas favorecem, de alguma forma, tanto agentes públicos quanto privados. O jurista lembra que, nessa situação, toda atividade econômica de alguma relevância não tem sua prosperidade baseada na abertura de mercados, na concorrência e na capacidade de inovação/reinvenção das empresas. Mas, diz ser notório no capitalismo de laços a facilidade em se cooptar os agentes do Estado para a troca de benefícios mútuos, conquistar vantagens que estão fora do próprio sentido produtivo do trabalho, mas na perspectiva de receber além daquilo que se faz. Conforme afirma Modesto Carvalhosa, o Brasil pode ser analisado a partir desse capitalismo de laços, num estágio em que este conceito teria predominância nas relações econômicas brasileiras.
O jurista cita um exemplo hipotético de uma empresa familiar fechada que consegue o contrato para uma obra de hidrielétrica a partir da sua capacidade de relações. Nisso, a organização tem a facilidade em aliciar a classe política, agentes regulatórios e demais representantes da administração pública, nos seus três níveis. Dessa forma, a empresa se dispõe a cometer ilegalidades para conseguir o contrato da concorrência e até superfaturar o mesmo. “Aqueles que têm relações com agentes públicos no Brasil, conseguem enriquecer. Já os que não possuem tais relações, não conseguem obter ganhos. Quando se analisa a maior empreiteira do país, se constata que a “prosperidade” que conquistou é totalmente alcançada nas relações que ela possui com os governos, aqui e no exterior”. Carvalhosa considera que as indústrias nacionais não buscam desenvolver práticas favoráveis à ampliação de sua capacidade competitiva, inclusive em âmbito mundial. De modo contrário, diz que se sustentam sob o protecionismo do Estado Brasileiro por meio de ações que possam ser relacionadas ao capitalismo clientelista como compra de medidas provisórias do Governo, como apurado pela Operação Zelotes. “Esta é a razão porque o Brasil não tem competitividade internacional, sendo um país em que o empresário só prospera no plano da troca de favores que obtém junto aos atores do estado”.
Modesto Carvalhosa considera que os efeitos danosos da corrupção no Estado Brasileiro podem ser constatados no próprio funcionalismo público. De acordo com o advogado, uma vez que a classe política atua de forma corruputa, o resultado é o desestímulo para a atividade do servidor público. “Faltam tanto o exemplo quanto a moralidade da parte dos grandes dirigentes das instituições e, logo, o funcionário público fica assumidamente desmotivado”. Ainda argumenta que este fator demonstra uma questão que passa despercebida pela maioria da população, a de que não existe falta de verbas para os serviços essenciais brasileiros e, sim, uma falta de compromisso dos agentes públicos em atender adequadamente à população. “A verba sobra, mas a operação da educação e da saúde, para ficar nesses dois pontos, é péssima. O que realmente leva ao Brasil ter serviços públicos péssimos é exatamente a falta de motivação dos funcionários públicos além das roubalheiras monumentais dentro da própria educação e da saúde”.
Segundo diz, a moralização do estado demanda uma punição efetiva dos políticos e agentes privados que têm conluio criminoso para atos de corrupção no país. “O caminho é a condenação bem ampla com aplicação de multas e prisão para todos os envolvidos, bem como se estruturar para acabar com o capitalismo de laços e quebrar a interlocução direta entre contratantes e contratados”. Para o jurista, é preciso ampliar o trabalho desenvolvido pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Justiça Federal no trâmite das investigações, acolhimento de denúncias e sentenças mais rigorosas. Segundo Carvalhosa, igualmente defende a atuação dos Ministérios Públicos estaduais devido à corrupção praticada nos municípios brasileiros. “É algo espantoso. Da mesma forma que existe o caso histórico da Lava Jato no Brasil, deve-se ter essa prudência porque se esquece que a corrupção nos municípios é inacreditável. Prefeitos e vereadores assumem os cargos e praticam todos os tipos de ilegalidades”.
Aplicação da Lei Anticorrupção
Carvalhosa relembra que a Lei Anticorrupção brasileira é fruto de três tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, em especial a Convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 1997. Segundo diz, ao ser assinada por grande parte dos países do mundo, os atos de corrupção foram considerados equivalentes aos crimes mais hediondos globalmente como tráfico de armas e drogas, de pessoas e órgãos humanos. “Portanto, a corrupção foi colocada no nível de inimigo público da civilização. Porque é da corrupção que surge a miséria humana, a miséria na África, no Brasil, na América Latina, no sudeste Asiático. Tudo frui da corrupção porque os governos se apropriam e desbaratam todos os recursos”. Mas, ao avaliar os desdobramentos da Lei Anticorrupção, Modesto Carvalhosa entende que a legislação poderá não trazer os resultados esperado pela sociedade. Isto porque, no primeiro grande teste da lei decorrente da Lava Jato, observa uma tentativa do Governo Federal em evitar a abertura de processos administrativos contra as empreiteiras envolvidas no Petrolão.
Em sua visão, a referida lei nunca foi aplicada integralmente. Para o jurista, esta é uma legislação existente somente no papel e que incomoda o Governo Federal porque, inevitavelmente, precisará ser aplicada em sua integralidade. “Como havia uma pressão popular, foi feito, inclusive, um decreto de regulamentação quando a Lei Anticorrupção é autoaplicável. Ouso até dizer que quem iria instaurar e julgar os processos administrativos, que o Governo não fez até agora, seriam os ministros de Estado”. De acordo com o jurista, o Governo Federal desempenha esse papel sobre o pretexto de que as empresas precisam ser preservadas. Ainda cita que os acordos de leniência, dispostos na Portaria n. 910 da Controladoria Geral da União (CGU), podem ser compreendidos como outra forma de se evitar a correta aplicação da lei. Conforme explica, do modo como os acordos estão configurados eles criam um Termo de Ajustamento de Conduta em que a empresa assume compromissos, como o controle de integridade, e deixa de sofrer as penalidades que poderia sofrer. “É uma forma de se manter as empresas vivas. Mas, acontece que ao serem jogadas publicamente nesse quadro de criminalidade, não se sustentam mais. Elas sangram e não têm condições de se manter e podem, eventualmente, exaurir-se”.
Atuação do Ministério Público e da Justiça
Modesto Carvalhosa também sustenta a tese de que a quebra da sensação de impunidade e de uma interlocução promíscua entre agentes públicos e privados se dá a partir do escândalo do Mensalão. Segundo diz, as condenações no plano político e na iniciativa privada tiveram importantes reflexos na sociedade brasileira e conferiram maior autonomia ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e à Justiça do país. Sobre o MPF, ressalta que a instituição tem agido de uma maneira absolutamente corajosa e, ao mesmo tempo, prudente, científica e bem informada. Conforme aponta, a consequência deste processo é percebida quando o MPF se torna o sustentáculo de todas as operações que se tem atualmente responsáveis por desmontes de corrupção nos quais estão envolvidos políticos, empresas e seus administradores. “O papel do Ministério Público tem sido excepcional nesse momento e que demonstra, não só vontade de exercer um papel autônomo de combate à corrupção, mas de uma capacidade técnica de investigar muito grande”.
Segundo afirma, a Justiça Federal tem apresentado um grande descortino nas investigações, na formulação do processo penal e nas condenações corajosas que tem sentenciado. Para o jurista, os tribunais superiores têm, a partir do Mensalão, sustentado e apoiado a atuação dos Tribunais Regionais Federais, sobretudo o do Paraná, ligado à Operação Lava Jato. “Há um caminho enorme de redenção dos costumes políticos no Brasil. O trabalho do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e dos Tribunais precisa ser prestigiado pela sociedade cada vez mais. Até porque a grande esperança brasileira no combate e controle da corrupção se encontra nestas instituições”.
Quanto ao desempenho do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou, em novembro passado, que as Cortes brasileiras julgaram cerca de 63 mil processos entre casos de improbidade administrativa e crimes contra a administração pública. Do total, 49,4 mil casos foram julgados pela Justiça Estadual.
Os números correspondem ao levantamento que inclui os casos julgados até setembro de 2015 e refletem a meta prioritária da Justiça brasileira em combater a corrupção. A proposta visa estimular julgamentos relacionados ao tema para reduzir o índice de processos judiciais pendentes de decisões e que foram distribuídos há, pelo menos, três anos. No primeiro ano de aplicação efetiva da meta, em 2014, cerca de 109,6 mil casos foram julgados e, destes, 20,8 mil estão relacionados à improbidade administrativa e 88,8 mil envolvidos em crimes contra a administração pública. Na época, o número representava cerca de 55% dos 197,8 mil processos que aguardavam julgamento há, pelo menos, três anos.
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