Estado mínimo criou colapso dentro e fora de presídios brasileiros
A privatização ou terceirização de atividades típicas do Estado, como a administração de presídios, aumenta as despesas públicas com superfaturamento dos gastos e potencializa o surgimento de rebeliões. Este é o argumento apresentado pelo ex-presidente do MPD, Airton Florentino de Barros, em recente artigo na coluna semanal MP no Debate, no Conjur, em que discute possíveis causas da atual crise do sistema carcerário no país. O procurador de Justiça aposentado diz que a Teoria do Estado Mínimo, adotada pelo Governo Brasileiro na década de 90, desqualifica os serviços públicos e promove o sucateamento da máquina pública e, como efeito, acarreta em sérios danos à organização social.
Conjur: MP no Debate

23/01/2017

Estado mínimo criou colapso dentro e fora de presídios brasileiros
Por Airton Florentino de Barros
Há pelo menos 40 anos o Ministério Público tenta, pela via judicial, obrigar o Estado a humanizar os presídios. E o Judiciário, na maioria das vezes, demonstrou entender serem discricionárias as decisões do Poder Executivo a respeito. Não se cuida, contudo, de política humanitária, mas de cumprimento da lei, que proíbe a superlotação de presídios e impõe, por exemplo, a separação dos presos condenados dos acusados ainda não julgados, bem como a observância de condições mínimas de segurança, salubridade e dignidade dos presos.
Tratar com abuso inaceitável quem foi privado da liberdade, justamente por ter cometido abusos inaceitáveis, indica desordem institucionalizada, provocando naturais rebeliões.
É certo que, até a década de 1980, o sistema carcerário ainda estava sob controle. Também fora dos presídios ainda havia segurança. Uma pessoa podia andar pela cidade, mesmo à noite, sem ser incomodada.
Tudo saiu do controle na década de 1990, quando o governo aderiu à cartilha da globalização econômica que, entre outras maldades sociais, impôs as teorias do Estado mínimo e da contenção de movimentos sociais.
Deveria a globalização unificar o comportamento das nações em todos os campos das relações humanas, especialmente na aceitação de diferenças raciais e religiosas, na cultura, educação, ciência e tecnologia. Isolando-se, entretanto, na área econômica, em vez de reduzir, acabou acentuando desigualdades.
Seria aceitável também a teoria do Estado mínimo se defendesse a menor intervenção estatal nas atividades privadas e a redução criteriosa da máquina administrativa ao tamanho do necessário à prestação eficiente dos serviços públicos essenciais à sociedade. Quando, todavia, desqualifica os serviços públicos e promove o sucateamento da máquina pública, com o objetivo de escolher beneficiários de privatizações e terceirizações, com concessões e vendas dirigidas, essa teoria pode acarretar sérios danos à organização social.
Não é verdade, a priori, que o que é público é ruim e só tem bom resultado o que parte da iniciativa privada. Há instituições públicas e privadas de excelência. Há algumas décadas, aliás, as melhores escolas, em todos os níveis, hospitais e empresas do país eram públicos.
É necessário compreender que ideologias político-partidárias estatizantes ou privatizantes iludem, mas não existem, apenas servindo para dar formal roupagem ao seu verdadeiro objetivo, que é a acomodação da gestão de recursos públicos e sociais nas mãos de grupos adeptos desta ou daquela facção.
Por esse equivocado caminho, a teoria do Estado mínimo cria governos fortes e enfraquece o Estado, tendendo sempre a beneficiar, assim, pequeno número de poderosos grupos econômicos que, continuam, num circulo vicioso, a financiar eleições do mesmo núcleo de poder, numa troca de favores entre corruptos. Não é o governo que deve ser forte, mas o Estado.
Só o Estado forte, com a meritocracia e a profissionalização de seus recursos humanos e com o investimento em adequada estrutura material, pode produzir saúde, educação e segurança pública de qualidade. Deve, assim, ser do tamanho do necessário, nem mínimo, nem máximo.
Nada impede que a iniciativa privada suplemente a atividade pública. Funções típicas do Estado, todavia, não podem ser delegadas a empresários, até tendo em vista os conflitos de interesses. Não há lugar para a promiscuidade entre o público e o privado.
De outra parte, só se podem conter movimentos sociais legítimos atendendo-se as reivindicações ou demonstrando-se a impossibilidade de fazê-lo. É temerária e até criminosa, porém, a deliberada criação de uma fila de desempregados, como ocorreu na década de 1990, com a finalidade de acabar com a possibilidade de greve, principal instrumento de negociação trabalhista, e, assim, aniquilar a ação sindical.
O certo é que tais teorias políticas debilitaram os órgãos públicos, incluindo a polícia, e levou o índice de desemprego nos grandes centros a mais de 20%, acabando por empurrar legiões de jovens à vadiagem e, em seguida, ao uso de drogas e, depois, ao tráfico, ao roubo e daí por diante, até chegar ao crime organizado ultraviolento.
Deu no que deu. A polícia tornou-se insuficiente e menos qualificada para vigiar e coibir a ação dos delinquentes dentro e fora dos presídios, o que só se agravou com a dita fila de desempregados e a consequente explosão da população carcerária.
Se um condenado corre riscos dentro do presídio, aqui fora não é diferente, pois o cidadão honesto corre a toda hora risco de vida em assaltos e barbáries à luz do dia, em qualquer lugar e até trancafiado dentro de casa. Uma terra sem lei, de salve-se quem puder, em que só o bandido está armado.
A privatização ou terceirização de atividades típicas do Estado, como a administração de presídios, além de aumentar despesas públicas com o superfaturamento, só potencializa o risco de rebeliões, como já comprovado.
Assim, a solução da guerra nos presídios passa necessariamente pela existência de honesta política de trabalho e emprego, pelo fortalecimento da segurança pública fora dos presídios e, enfim, pelo restabelecimento do Estado.
É preciso que a globalização recomece por outros caminhos. É preciso que a ética prevaleça sobre a economia.
Airton Florentino de Barros é advogado e professor de Direito Comercial. Foi procurador de Justiça em São Paulo e também presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
Clique aqui e leia o original no Conjur.
Imagem: Arquivo/web