MP no Debate
Sociedade dependente do Judiciário revela problemas patológicos
Por Luciana Vieira Dallaqua Vinci e Wilson José Vinci Júnior
Atualmente, pode-se afirmar que o Poder Judiciário ostenta uma posição de destaque, não apenas no plano nacional, mas também internacionalmente. Alguns doutrinadores aduzem que este fenômeno não é recente, mas fruto do avanço de constituições rígidas, munidas de sistemas de controle de constitucionalidade, que tiveram origem nos Estados Unidos[1].
Com o advento das constituições contemporâneas, optou-se por constitucionalizar diversos assuntos considerados relevantes para o bom funcionamento do Estado, sendo que uma das causas desse fenômeno foi a desconfiança no legislador ordinário.
Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, percebeu-se a necessidade de se disciplinar alguns assuntos em um documento político-jurídico com superioridade em relação aos demais e rigidez em seu processo de reforma. Em outras palavras, diversos assuntos migraram para o texto constitucional, a fim de evitar a sua discussão pela chamada “maioria legislativa de ocasião”, cabendo ao legislador ordinário e ao administrador público apenas efetivar o preceito constitucional.
A esse momento histórico atribui-se o nome de constitucionalismo, cujas características principais são a centralidade, a normatividade e a superioridade da Constituição, colocando-a no topo da pirâmide normativa do ordenamento jurídico. A Constituição passa, assim, a regular todos os atos da vida social, o que traz características interessantes.
A primeira característica é a elevação do grau de importância do Poder Judiciário, fenômeno que é facilmente explicado por um silogismo: se as condutas jurídicas das pessoas devem se submeter à Constituição e se cabe ao Poder Judiciário interpretá-la, todos os conflitos acabam desaguando no Judiciário que, assim, ganha papel de destaque na sociedade atual – trata-se da judicialização dos conflitos. Entretanto, com lastro na opinião de Oscar Vilhena[2], essa hiperconstitucionalização da vida contemporânea é consequência da desconfiança na democracia, e não a sua causa.
Vale dizer: o sistema representativo democrático se retraiu porque não foi capaz de cumprir as promessas de justiça e igualdade. Além disso, não se deve esquecer que, no caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 disciplinou, de maneira analítica, não apenas as relações jurídicas, mas também as relações sociais, econômicas e políticas em 250 artigos, incrementados por muitos parágrafos e incisos, além de sua parte transitória (ADCT).
A segunda característica é a inegável força normativa da Constituição, significando que há uma primazia pela sua aplicação direta ao caso concreto. Não se desconhece que há matérias dependentes de intermediação legislativa (a exemplo das normas constitucionais de eficácia limitada); todavia, sempre que possível, a Constituição pode e deve ser aplicada diretamente, como na teoria da aplicabilidade direta ou imediata dos direitos fundamentais, adotada no Brasil e encampada pelo STF.
A terceira característica reside no fato de que, ao assumir o papel de “guardião último dos ideais democráticos”[3], o Poder Judiciário, por vezes, é chamado a agir na omissão dos outros poderes estatais. Para Paulo Bonavides[4], “afigura-se-nos, assim, o Estado social do constitucionalismo democrático da segunda metade do século XX o mais adequado a concretizar a universalidade dos valores abstratos das Declarações de Direitos Humanos”.
Em tais situações, a depender da matéria sob análise, sua atuação passa a ser confundida e criticada, por supostamente invadir as esferas de atuação primordiais do Poder Executivo e do Poder Legislativo. É o que se dá, por exemplo, na definição de políticas públicas, em que corriqueiramente se sustenta a ilegitimidade da atuação do Poder Judiciário.
A gradação de ativismo ou autocontenção judicial[5] varia conforme o prestígio conferido ao Poder Judiciário (no primeiro caso) e aos Poderes Executivo e Legislativo (no segundo caso), o que depende de cada momento histórico analisado.
Vale recordar que, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 atribuiu ao STF as funções de (i) tribunal constitucional (responsável pelo controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, pela via concentrada), (ii) órgão de cúpula do Poder Judiciário (atuação como última instância judicial no Brasil) e (iii) foro especializado (julgamento criminal de altas autoridades da República, além de mandados de segurança impetrados em face de certos atos do Executivo e do Legislativo, ações originárias etc). Com tantas atribuições, é inegável que o STF ascenderia a um papel de destaque no cenário atual.
Por outro lado, o ideal é que haja equilíbrio entre as três funções do poder estatal, sem supremacia permanente de uma sobre as demais. Afinal, a aplicação direta da Constituição Federal é incumbência de todos os Poderes. Uma sociedade dependente do Poder Judiciário revela a existência de problemas essencialmente patológicos em sua estrutura, dentre os quais a incapacidade de resolver seus próprios conflitos, bem como a impossibilidade de obtenção de serviços públicos eficientes diretamente das entidades incumbidas do seu fornecimento.
[1] A origem do controle difuso de constitucionalidade é datada de 1803, a partir do emblemático julgamento do caso Marbury VS Madison, nos Estados Unidos da América.
[2] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito GV, jul-dez, p. 441-464. São Paulo: 2008, p. 443.
[3] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito GV, jul-dez, p. 441-464. São Paulo: 2008, p. 443.
[4] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo:Malheiros, 8ª ed., 2007, p. 32.
[5] Através da autocontenção judicial, o Poder Judiciário busca reduzir o seu grau de interferência nos demais poderes.
Luciana Vieira Dallaqua Vinci é promotora de Justiça, membro do Ministério Público Democrático (MPD) e mestranda em Direito pela PUC-SP.
Wilson José Vinci Júnior é procurador federal, mestrando em Direito pela PUC-SP.
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