Autor de novo livro sobre impeachment e democracia, João Benedicto de Azevedo Marques diz que “nenhuma democracia é perfeita”
10/06/2016
O sistema político brasileiro, o processo eleitoral, o funcionamento das instituições nacionais, a abertura de processo de impeachment de um presidente da República e suas consequências na sociedade e na democracia são os temas abordados no novo livro do integrante do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), João Benedicto de Azevedo Marques. Em Impeachment e Democracia (Editora CLA, 127 páginas, R$ 39,00 – clique aqui para ver mais), obra recém-lançada em São Paulo-SP, o procurador de Justiça aposentado, de 75 anos, resgata fatos históricos do País e outros aspectos do âmbito político que se permearam ao longo do tempo, bem como ainda repercutem e influenciam em acontecimentos recentes do Brasil. O objetivo da obra é promover uma reflexão sobre estes temas e propor soluções na perspectiva de se construir uma sociedade mais humana, justa e respeitadora dos direitos fundamentais.
Entre 1975 e 1978, João Benedicto de Azevedo Marques foi o primeiro presidente da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) – hoje renomeada como Fundação Casa. Também presidiu o conselho do Instituto Latino-Americano da ONU para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente no Brasil (Ilanud) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, tendo também ocupado a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo. Nesta entrevista ao MPD, o autor expõe sua visão sobre a atual crise política, que acarretou no processo de impedimento da presidente afastada Dilma Rousseff, e apresenta possíveis caminhos para a moralização da classe politica e o aprimoramento das instituições brasileiras.
MPD – Quais são os laços históricos que te inspiram a escrever sobre a democracia brasileira?

Acredito que todos nós temos uma obrigação de cidadania em assumir uma posição durante uma crise política. Eu tenho 75 anos e, quando eu estava no Ginásio, eu me lembro da crise de 1954 que levou ao suicídio de Getúlio Vargas. Aquele fato me impactou muito porque havia um condicionamento brutal da mídia com o objetivo de retirar Getúlio do poder. Na época, a sociedade era muito muito passiva e pouco participativa e, quando Getúlio se mata, São Paulo fica quieta, a cidade se emudece. Eu também mudei completamente de posição – foi o primeiro choque político na minha vida e eu tinha uns 14 anos de idade. Depois veio o Golpe de 64, no qual eu só não fui preso porque estive acamado durante alguns dias. Agora, 60 anos depois eu vejo situações semelhantes.
MPD – Como avalia a atual crise política brasileira?

Sempre fui muito legalista e o que me choca é que, certo ou errado, mesmo com problemas apontados posteriormente, o Brasil teve uma eleição legítima e homologada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2014. Está certo que a diferença de votos foi muito pequena, mas eu acredito que o equívoco se dá em como a oposição partidária faz a oposição no País. A oposição deveria manter uma posição firme no parlamento, mas escolheu outro caminho constitucional. O processo de impeachment é constitucional, mas não deixa de ser uma manobra política a qual anulará a vontade soberana do povo manifestada na eleição. Não sou contra que se apure eventual crime de responsabilidade administrativa da presidente da República Dilma Rousseff, mas é necessário que haja um crime de responsabilidade. Os juristas estão divididos, há os que acham que houve e os que não – nisso se tem uma zona cinzenta onde este processo de impedimento se encontra.
MPD – Portanto, como o impeachment deveria ser compreendido?

Eu acredito que o professor Paulo Brossard foi muito sábio em seu livro O Impeachment , uma das poucas obras sobre o assunto. Brossard diz que o “impeachment é um remédio constitucional extraordinário” e, portanto, não pode ser banalizado. Veja que o autor adjetiva o impeachment como um remédio constitucional, mas que não é destinado para resolver crises políticas porque, em geral, o impedimento as agrava. Uma sabedoria escrita em 1992, talvez antevendo o momento que o Brasil estaria passando hoje. É um direito de qualquer cidadão e de partidos políticos o de acionar este remédio, mas todos devem estar cientes que isto acarreta consequências.
MPD – Quais são as expectativas do senhor quanto ao atual processo de impedimento?

O Brasil de hoje não é o mesmo de 54 nem o de 64. O País tem grandes metrópoles como São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba e Salvador – cidades com milhões de habitantes. Como é que as pessoas da periferia das grades cidades irão reagir? Como o eleitor que votou na Dilma para a presidência irá reagir se, numa manobra política, o mandato da presidente é encurtado? Aliás, o impeachment é um remédio tão forte que, qualquer que seja o resultado, acarretará em grandes manifestações. Sendo Dilma Rousseff declarada impedida, haverá manisfestações contrárias, as quais o impacto ninguém sabe. Sendo ela inocentada, também haverá manifestações contrárias ao seu governo. Porém, ressalta-se que, até o momento, o povo brasileiro deu um exemplo de povo civilizado porque, em nenhum ato de manifestação, houve violências em grandes níveis, foram todas pacíficas.
MPD– O senhor vislumbra alguma solução para esta crise política?

A solução se encontra naquilo que diz a Constituição Federal em seu artigo primeiro. “Todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos”. Acontece que o processo eleitoral é a cada quatro anos. A solução, portanto, seria uma emenda constitucional que convocasse as eleições para o cargo de presidente da República – isto estando todas as forças políticas de acordo. O que as urnas decidissem, está decidido. Seria possível até eventualmente um recall para se saber junto à população se confirma-se ou não o mandato da presidente. Fora deste âmbito, a situação política vai se agravar e, com ela, a economia também – porque, de certa forma, o país está quase paralisado.
MPD – Quais são os caminhos para moralizar o sistema político e torná-lo realmente eficaz?

Mais do que nunca se nota o cansaço do atual modelo político, houve o seu esgotamento. É percebido que este modelo eleitoral com financiamento aberto de grandes corporações não é o adequado. Se não houver um rígido controle do financiamento de campanhas, não se há uma representação adequada da população. A votação da admissibilidade do processo de impeachment na Câmara dos Deputados prova que o Brasil não está bem representado. Não é pelo resultado, mas pela fundamentação e justificativas dadas na votação que demonstram a necessidade urgente da reforma política. Além disso, o custo das campanhas é muito alto e o candidato acaba por se vincular a corporações que o financiam, a grupos empresariais ou, pior, ao submundo do crime. Este é um grande nó no sistema eleitoral. O sistema político, com o presidencialismo, está assim hoje por causa disto e é necessário uma reforma que torne o processo eleitoral mais legítimo e transparente. A verdade é que não existe nenhuma democracia perfeita. O processo eleitoral norte-americano, por exemplo, é financiado por grandes corporações. A questão dos Estados Unidos é bem interessante porque, hoje, o Trump encarna o que há de mais atrasado nos americanos, a Hillary é uma continuação do Governo Barack Obama, o Sanders já é um candidato que quer romper com regras, mas dificilmente terá sucesso. Ainda há os candidatos independentes, que praticamente não têm chance nenhuma. Portanto, o sistema eleitoral de lá também está em crise.
MPD – Como aprimorar o funcionamento das instituições públicas brasileiras?

Pela transparência e, neste aspecto, o Ministério Público tem grande papel dado pela Constituição de 1988. O MP tem exercido esse papel, mas precisa fazê-lo ainda mais dentro dos limites constitucionais. Ainda há outra instituição, que contribuímos para trazer ao Brasil, que é a ouvidoria. A ouvidoria é uma instituição de origem sueca e consiste num canal aberto para a população, assim como é o Ministério Público, mas a ouvidoria é uma instituição de controle. Também, de certa forma, as comissões parlamentares de inquérito, que existem desde 1946, cresceram ao longo do tempo. É inegável a existência da corrupção, esse casamento obscuro entre a administração público e as organizações. Mas, se houvesse mais organismos de controle e participação da sociedade o estado poderia ser mais moralizado. A classe política não pode simplesmente “desconhecer” quando a população vem para as ruas, como em 2013, completamente insatisfeita com os serviços públicos em geral e com um modelo político que está em crise. Todos os serviços públicos precisam de aprimoramento no País, e só o serão com maior participação cidadã do povo. O que fecha tudo isso? É que o País precisa investir, e muito, em duas áreas fundamentais: educação e saúde. Se o Brasil não melhorar a escola pública, se a não transformar em escola de tempo integral, se o professor não for valorizado com melhores salários, o País continuará a preparar mal os seus cidadãos.
MPD – E o que dizer quanto ao futuro da sociedade brasileira? É possível construir um novo país?

Eu sempre fui otimista e mantenho a esperança. A sociedade não está morta, ela está viva. Há as manifestações populares. Pode até haver certo excesso, desvios, atalhos perigosos, mas a sociedade está pulsado. Há outras coisas favoráveis – a imprensa é livre, não tem censura – mesmo que grandes empresas a controlar a imprensa. E outro grande avanço é que o País continua tendo eleições regulares. Hoje temos, por coincidência, uma presidente, que pode ter os defeitos que tiver, mas não deixa de ser a primeira mulher presidente do País. Tudo isto apesar do Brasil estar casando uma crise política com uma crise econômica. Crise econômica esta que é decorrente de fatores externos. O Brasil é uma potência exportadora de commodities e estas caíram brutalmente no mercado internacional – a China, que seria a grande compradora nossa, hoje, compra bem menos.
MPD – Quais outras memórias que envolvam a luta pela democracia o senhor pode partilhar?

Depois da morte do Getúlio, o que mais me impactou na vida e em minha formação foi a passagem pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e, em seguida, a experiência de estagiário e a carreira de Promotor de Justiça, dentro da visão do Ministério Publico, de ser o fiscal da lei e o defensor da legalidade constitucional , atuando sempre em defesa dos marginalizados. Um outro sonho que tivemos junto com Antonio Visconti, Marcos Vinicius Petreluzzi e muitos outros foi a criação do Ministério Público Democrático, para defender o estado democrático de direito que era também a visão do nosso colega e então futuro ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Melo. Isto, sem falar da luta contra a Ditadura Militar, que injustamente aposentou colegas ilustres como Plinio de Arruda Sampaio, entre outros, e ainda desembocou na Constituição de 1988. E já que recordar é viver, como não esquecer da nossa passagem pelas investigações do Esquadrão da Morte, junto de ilustres membros do M.P., como Hélio Bicudo, Dirceu de Melo, Maria Claudia Foz e muitos outros. Momento no qual tivemos a oportunidade de pedir a mudança do nome do Presídio Tiradentes, eis que não aceitávamos que um presídio politico tivesse a denominação de um mártir da independência, Tiradentes.
Foto: Iara Morselli

Imagem: Capa do Livro Impeachment e Democracia