27/08/2016
Consultor Jurídico: Mecanismo de Controle – “Sociedade deve ter instrumentos para poder agir em caso de inação do MP”

Por Sérgio Rodas

Assim como qualquer autoridade, o Ministério Público deve estar submetido a mecanismos de controle, mesmo que interno, respeitando o pluralismo. Do lado dos cidadãos, estes devem ter instrumentos jurídicos para poderem agir caso o MP nada faça. A avaliação é do procurador-geral-adjunto de Portugal António Cluny, que também representa o país na Unidade Europeia de Cooperação Judiciária (Eurojust).
Segundo Cluny, a ampla gama de competências do MP brasileiro permite que a instituição possa trabalhar na prevenção de delitos de forma mais eficaz que os MPs europeus, estes mais focados na repressão posterior aos crimes. E o controle prévio, a seu ver, é a melhor maneira de combater o crime organizado — especialmente práticas de corrupção.
Em relação à atuação do órgão brasileiro no combate à corrupção, o procurador português é só elogios. Só faz uma ressalva: sua impressão é a de que o órgão não repete esta qualidade na defesa dos direitos humanos, seja das vítimas ou dos criminosos.
Cluny esteve no Brasil para participar do 5º Congresso Nacional do Movimento do Ministério Público Democrático: Ministério Público e sociedade – 25 anos de construções democráticas, que terminou nesta sexta-feira (26/8).
Leia a entrevista:
ConJur — No Brasil, o Ministério Público vem assumindo um papel de protagonista na política, comandando grandes operações, como a “lava jato”, e propondo alterações legislativas. Qual é o papel do MP em Portugal?

Antonio Cluny
– Uma das características mais significativas do MP brasileiro é, como destacou já Luigi Ferrajoli, o famoso jurista italiano, o fato de os seus agentes se intitularem “promotores”. A forma dinâmica, ampla e imaginativa como o MP brasileiro tem, de fato, “promovido” a efetivação do respeito da lei e da Justiça, é a característica distintiva que o destaca no seio das instituições públicas brasileiras e mesmo em relação à ação dos MP de outros países. O fato de o modelo de MP brasileiro não ter ficado refém das atribuições clássicas, que, em regra, remetem o MP para o papel (mais ou menos ativo) de titular da ação penal, mostra bem como o MP brasileiro terá entendido que a melhor maneira de lidar com a defesa da legalidade democrática é agir em diferentes planos. Desta forma, agindo na defesa da legalidade em áreas diferentes, tem impedido, quando possível, que as diferentes manifestações de ilegalidade possam, elas mesmas, ser geradoras das condições propícias ao crime. Neste sentido, creio que está de parabéns o MP brasileiro. Não conheço melhor exemplo. Tem-me parecido, porém — não sei se com razão, ou sem ela — muito menos conseguida a preocupação do MP brasileiro em assegurar, no plano da ação penal, o controle e a defesa dos direitos humanos, tanto das vítimas como dos delinquentes.
ConJur — E qual a diferença em relação aos MPs de Portugal e da Europa?

Antonio Cluny
– O MP português, não tendo no campo da defesa dos direitos de cidadania e do controle da legalidade administrativa uma ação tão abrangente quanto a do MP brasileiro, não se encontra, também, limitado exclusivamente ao exercício da ação penal, como acontece com outros MPs europeus. Há que reconhecer, todavia, que a atividade primordial dos MP europeus, incluindo a do português, é dirigida à área da criminalidade. Este enfoque muito restrito do campo de ação dos MP europeus acaba, contudo, por torná-los menos eficientes, inclusive na área da justiça criminal. Como antes referi, a própria prevenção da criminalidade trava-se, desde logo, no controle da legalidade em outras áreas: na área dos conflitos laborais e sociais, na área da defesa do ambiente, na importante área da legalidade financeira. Nesse aspecto, o MP português encontra-se mais bem apetrechado do que a maioria dos MP europeus. Infelizmente ainda não se conseguiu uma total coordenação do conjunto dos seus órgãos tendo em vista agir em todos os planos concertada e eficazmente.
ConJur — Diversos críticos ao MP no Brasil afirmam que o órgão assumiu um viés demasiado punitivista. Deve ser objetivo do MP buscar a condenação a qualquer custo?

Antonio Cluny
– Como disse, o MP na Europa está, em regra, cingido ao exercício da ação penal. O exercício da ação penal na acepção europeia contempla, porém, a direção do inquérito criminal. Mesmo no Reino Unido — uma excepção europeia nesta matéria — o Crown Prosecutor Service pode hoje influenciar decisivamente a polícia no desenvolvimento e condução das investigações. A limitação das funções dos MP europeus à área criminal não é, todavia, uma boa solução, porque, entre outros aspectos, restringe a sua capacidade para conhecer a realidade institucional e social que envolve a grande criminalidade, designadamente a de colarinho branco. Portugal é uma exceção no contexto europeu, pois o seu MP reúne um conjunto de competências no âmbito da defesa da legalidade, dos direitos sociais e dos direitos difusos e coletivos. Além disso, o MP português funciona também como advogado do Estado, o que também é caso único e uma solução questionável.
ConJur — Essa conciliação é possível?

Antonio Cluny
– Os procuradores que exercem tais funções organizam-se, em regra, em procuradorias autônomas. Este papel pode ser, no entanto, contraditório com as outras funções, mas até agora tem realmente sido possível conjugar tais funções evitando conflitos insanáveis. Para tanto, tem ajudado o sentido de defesa da legalidade estrita que o MP português cultiva, mesmo quando tem de agir como advogado do Estado. Talvez por isso, em alguns casos “mais sensíveis”, a administração pública prefira contratar advogados particulares.
ConJur — O que o senhor acha da espécie de “glorificação” que os membros do MP passaram a receber pelo combate à corrupção? Que efeitos ela traz para a Justiça?

Antonio Cluny
– A melhor estratégia é sempre a preventiva. Ou seja, criar mecanismos de controle que dificultem, ou rapidamente detectem os esquemas de corrupção. Num mundo em que os interesses públicos e privados se confundem de forma absolutamente excessiva, em que as administrações públicas delegam no setor privado muitas das suas funções originárias, só um apertado controle preventivo e um controle sucessivo, exaustivo e rápido do uso do dinheiro público pode condicionar a corrupção. A corrupção, hoje, não se traduz sempre num pacto corruptor explícito e na troca de vantagens materiais imediatas: ela ocorre nos casos mais relevantes através de um intrincado jogo de influências e contrapartidas subentendidas, de difícil detecção.
ConJur — Como isso pode ser resolvido?

Antonio Cluny
– As auditorias de legalidade sobre os atos geradores de despesa pública, mas também sobre a eficiência e economicidade dos contratos públicos podem, neste campo, ter um papel decisivo na detecção e na denúncia dos casos mais graves de corrupção. A conjunção de tal atividade com a ação penal permite fechar o círculo: evitar danos, reparar os já produzidos e punir os infratores. No mais, impõe-se cooperação ativa entre os MP de todos os países fundada numa confiança mútua assente numa cultura de direitos humanos e que permita a sua ação coordenada e eficiente.
ConJur — Há também quem afirme que o MP brasileiro, com sua autonomia, virou uma instituição sem controle. Que tipo de controle o MP deve ter?

Antonio Cluny
– Em princípio o Ministério Público como qualquer autoridade deve ser alvo de controle. Este controle pode ser feito pelo órgão do controle do MP, sendo que a composição deste deve integrar personalidades de diversos quadrantes tanto do ponto de vista das instituições públicas de onde provém, como do ponto de vista do pluralismo político. Além disso, é importante que sejam fornecidos aos cidadãos instrumentos jurídicos de intervenção processual para poderem agir em caso de inação do MP. Deste modo se pode conjugar um controle superior e ao mesmo tempo um controle popular por parte dos interessados na iniciativa do MP.