Justiça precisa agir com mais coragem e rigor para fortalecer Cultura de Paz

* Foto Creative Commons – Divulgação Autorizada
O papel do Sistema Judiciário deve ser mais corajoso e rigoroso para auxiliar no desenvolvimento da cultura de paz na sociedade brasileira. Este é um dos argumentos que a procuradora de Justiça dos Direitos Difusos e Coletivos e membro do MPD, Sueli Riviera, apresenta durante a entrevista cuja íntegra está disponibilizada, abaixo, para você leitor. Os pensamentos da procuradora são referências para a reportagem de capa da edição 44 da revista MPD Dialógico, que discute as perspectivas de paz e estabilidade social. Sueli Riviera também é autora do artigo de abertura da publicação, intitulado É preciso educar para tolerância e paz. O texto está reproduzido na coluna MP no Debate do site Conjur e proporciona reflexão sobre o assunto como é visto nos comentários da página.
Em sua exposição, defende que o Poder Judiciário “deve fazer cumprir a Constituição e as Leis, obrigando o Estado a implementar as políticas públicas de cunho constitucional, especialmente as que envolvem direitos sociais.” Ao longo da entrevista, a procuradora aborda a cultura de paz como a quebra dos paradigmas sociais da atualidade para o fortalecimento de uma sociedade, baseada em famílias estruturadas, que seja tolerante com as diferenças e voltada para a resolução pacífica de conflitos. Ainda considera a educação como pilar para o desenvolvimento desta cultura e destaca a necessidade do resgate de valores éticos e morais nas diferentes famílias, nas escolas e na sociedade. ”Acredito que podemos ensinar a PAZ. Esse é o grande desafio do nosso século e a melhor herança que poderemos deixar às futuras gerações.”
MPD Dialógico: Como entende que o seu trabalho ajuda nos processos de paz social?

Sueli Riviera: Considerando que a vida em sociedade exige o cumprimento da Constituição Federal e das leis e que sou procuradora de Justiça na Procuradoria de Direitos Difusos e Coletivos de São Paulo, atuando, pois, em segundo grau nas ações coletivas que envolvem os direitos da infância e juventude, o patrimônio público (improbidade administrativa e corrupção), o meio ambiente e urbanismo, cidadania e consumidor promovidas pelo Ministério Público de primeira instância, Defensoria Pública e cidadãos que ajuízam as ações populares por atos ilegais e lesivos, tem-se que todas as vezes que consigo colaborar para que a justiça seja feita demonstrando que a lei foi desrespeitada e que as punições/sanções devem prevalecer, estou contribuindo para a paz social, que também decorre da realização da justiça.
MPD Dialógico: O que a senhora entende como cultura de paz?

Sueli Riviera: Após o término da guerra fria e já existindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros instrumentos internacionais pertinentes ao sistema das Nações Unidas, entendeu-se que o momento era propício para se falar e se promover a paz, mudando os paradigmas que norteavam e ainda norteiam as relações humanas e que geram conflitos internos e externos, surgindo assim a Cultura de Paz que está relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos. Trata-se de uma Cultura lastreada na tolerância, solidariedade, no compartilhamento de conhecimento, no respeito aos direitos (o princípio do pluralismo, que assegura e sustenta a liberdade de opinião) empenhando-se em prevenir conflitos solucionando-os nas fontes geradoras que englobam novas ameaças à paz e segurança como a exclusão social, discriminação, analfabetismo, pobreza extrema e degradação ambiental. A Cultura de Paz procura solucionar, portanto, os conflitos por meio do diálogo, da negociação e da mediação de forma a tornar a guerra e a violência totalmente inviáveis. Eu vejo a cultura de paz como uma mudança de paradigmas da forma como vivemos hoje porque a sociedade está em colapso. O planeta está em colapso. É uma mudança de paradigma, uma nova maneira, um novo modelo de se viver no mundo! Vale aqui lembrar a famosa frase de Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta.” (Long Walk to Freedom”, Nelson Mandela, (1995). Não há dúvida que se trata da grande tarefa do século e de difícil realização, porém é possível educar-se para a paz!
MPD Dialógico: Em sua opinião, como a paz se torna um fator de estabilidade social?

Sueli Riviera: Não existe estabilidade social sem paz. Veja a instabilidade que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Sem a aplicação da Cultura de paz continuaremos com os índices alarmantes de violência no mundo, guerras movidas por fundamentalismo religioso, homicídios, violência doméstica. O ser humano tem sido educado para viver em conflito, para a competitividade exigida pelo mercado, para ter posses materiais como sinônimo de sucesso e status social. O ser humano não tem sido educado para pensar, para viver em liberdade e no regime democrático, para respeitar as opiniões alheias, para aceitar e conviver com as diferenças, solucionando conflitos – que sempre existirão – sem o emprego de violência. Porém tudo isso passa pela mudança de paradigma!
MPD Dialógico: Quais são os passos necessários para se chegar a esta paz e conseqüente estabilidade social?

Sueli Riviera: Estabilidade social se atinge com redução das desigualdades sociais, educacionais, econômicas, culturais, eliminação da pobreza; reforma agrária, com a garantia dos direitos sociais; a demarcação das terras indígenas; a distribuição justa das riquezas produzidas pelo país, educação política da população, redução da discriminação, combate ao racismo, Justiça célere e eficaz, qualidade sustentável de vida em meio ambiente equilibrado, funcionamento adequado das instituições públicas e a valorização efetiva do ser humano com o respeito aos seus direitos fundamentais.
MPD Dialógico: Da mesma forma, quais os impedimentos para a sociedade conquistar a paz?

Sueli Riviera: São muitos os impedimentos ou dificuldades na medida em que para tanto, deve-se implementar a Cultura de Paz que engloba muitas medidas, tendo a educação como meta prioritária e, nesse ponto, pretende “educação para todos, com vistas a alcançar o desenvolvimento humano, social e econômico, e promover uma Cultura de Paz; zelar para que as crianças, desde a primeira infância, recebam formação sobre valores, atitudes, comportamentos e estilos de vida que lhes permitam resolver conflitos por meios pacíficos e com espírito de respeito pela dignidade humana e de tolerância e não discriminação; além das demais medidas:desenvolvimento econômico e social sustentável e o respeito a todos os direitos humanos; garantir a igualdade entre mulheres e homens; promover a participação democrática; promover a compreensão, a tolerância e a solidariedade, destinadas a apoiar a comunicação participativa e a livre circulação de informação e conhecimento; e, para promover a paz e a segurança internacionais. Se a educação é prioritária, entendo que devemos educar nossas crianças para a convivência em sociedade no regime democrático e isso passa pela obrigatória inclusão de matérias como ciências políticas e cidadania no currículo escolar e o ensino adequado da matéria história. É preciso resgatar a história política do Brasil nas escolas para que as crianças saibam que tudo foi construído com muito sacrifício de pessoas corajosas que enfrentaram os regimes ditatoriais. Não é possível avançar sem resgatar a verdade e instruí-las de molde a que possam entender e vivenciar a democracia com o objetivo de que os regimes de exceção não voltem nunca mais, bem como para que vivam de forma adequada e equilibrada em sociedade. Cada criança brasileira deve se sentir parte de uma grande nação que ainda está em construção com a participação e colaboração de todos, para que tenham um futuro decente e sem violência. Para tanto, é imperioso que se dê o devido valor aos professores, preparando-os e remunerando-os de forma decente. Sem um bom educador, não se pode ter bons alunos, bons cidadãos!
MPD Dialógico: Pode-se dizer que a cultura de paz começa no ambiente familiar?

Sueli Riviera: A família é a base da sociedade e para que ela pratique a Cultura de Paz, precisa ser orientada, bem estruturada, educada e fortalecida.
MPD Dialógico: Como falar de paz quando a violência contra os direitos humanos e fundamentais está em casa?

Sueli Riviera: Na verdade, essa violação de direitos está na sociedade e se reflete e repete dentro das casas. Realmente a situação é bem grave! Onde não há amor, conhecimento, educação e pacifismo, não há paz e isso obviamente vale para as famílias. A situação é bem grave e de difícil solução. Ora, vejam, se o próprio PAPA Francisco diz ao mundo todo que os pais podem dar palmadas para corrigir os filhos e se sempre foi permitido educar filhos com palmadas – tendo sido recentemente proibida no Brasil pela Lei da Palmada – e outras agressões, se muitas crianças foram “educadas” por pais autoritários e que também achavam que podiam corrigir os filhos por meio de agressões; se a violência impera nas sociedades desde os primórdios; se as pessoas que formam famílias repetem em regra, o que experimentaram na infância e adolescência; se tivemos 21 anos de ditadura militar em que milhares de pessoas foram “desaparecidas” e incontáveis pessoas foram brutalmente torturadas e até hoje a verdade não foi esclarecida no Brasil; se nas escolas havia e, em muitos lugares, ainda há castigos físicos como forma de disciplinar as crianças; se a polícia militar nos dias de hoje ainda tem “licença” para matar em muitos lugares com a complacência de boa parte da população, dentre os quais, algumas autoridades que deveriam fazer cumprir a lei, parece óbvio que tudo isso se reflete nas famílias que violam os direitos fundamentais dos filhos.
MPD Dialógico: Quais os pontos que fazem surgir casos de violência familiar?

Sueli Riviera: São múltiplos os fatores que acarretam a violência doméstica: O machismo que ainda é muito forte na sociedade, o sentimento de posse sobre a mulher e os filhos; desigualdade de direitos entre homens e mulheres; diferenças de remuneração entre homens e mulheres que exercem a mesma função, dificuldades de relacionamento por falta de entendimento das emoções como paixão e amor; frustração, falta de cultura e de conhecimento, ausência de punição severa aos agressores nos casos de violência doméstica e ausência de meios efetivamente protetivos das vítimas; complacência dos demais integrantes da família e da sociedade – já que ainda é voz corrente que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” – falta de renda adequada para atender as necessidades básicas da família, uso de álcool e drogas, desvalorização da vida, violência escancarada nas comunidades, falta de moradia digna, tensões e pressões infindáveis na vida atual, dentre outros. Enfim, são múltiplos os fatores que alimentam e provocam a violência doméstica.
MPD Dialógico: Quais os impactos da violência externa no ambiente familiar?

Sueli Riviera: A intolerância que presenciamos atualmente no Brasil e no mundo com suas profundas desigualdades educacionais, sociais, culturais, econômicas, violência e opressões de todo gênero impactam a sociedade e sua base que é a família.Raramente se vê uma boa notícia na televisão ou outro meio de comunicação. Desde o amanhecer até o fim do dia, as pessoas são bombardeadas com notícias estarrecedoras que as fazem perder o resto de fé na humanidade Isso é o que dá audiênia! Todavia, esse bombardeio de más notícias, a maioria delas envolvendo atos de brutalidade e violência. Tudo isso somado a uma péssima qualidade de vida, principalmente nas grandes cidades, impactam as famílias porque são fonte geradora de muito stress que implica na boa convivência familiar. As pessoas mudam seus hábitos por conta da violência externa, impedem os filhos de saírem à noite, o que gera brigas intermináveis, vivem cercados de grades, prisioneiros em suas próprias casas, temerosas de se tornarem vítimas de assalto, homicídio, latrocínio. Ninguém mais vive tranquilo! O stress é grande e pessoas estressadas, amedrontadas e frustradas ficam mais agressivas e violentas. Assim, a violência externa é muito impactante no ambiente familiar.
MPD Dialógico: E os jovens? Qual a relação deles com a questão da violência nas famílias?

Sueli Riviera: A questão é muito ampla porque depende de quem é esse jovem, como vive e em quais condições ele tem sido tratado e educado. Temos realidades bem distintas e extremadas no Brasil. Temos um grupo de jovens que tem tudo e acesso fácil a tudo, e outro grupo de jovens composto pela maioria que não tem quase nada, e tampouco acesso a qualquer produto que os jovens são seduzidos a terem, como expressão da juventude, da própria existência, ainda que sem qualquer valor humano. Aqui já temos uma grande diferença que acarreta muitos conflitos. Desse segundo grupo, há muitos adolescentes brasileiros de quinze ou dezesseis que já constituíram famílias, já são pais e arrimo de família e que para garantir o sustento, deixaram de estudar para trabalhar, bem como vivem em condições precárias. Muitos, ao se tornarem pais e vivendo em ambiente hostil e violento, sem apoio de uma família devidamente estruturada, buscam na prática de infrações um meio de sustento e encontram a apreensão/prisão e, muitas vezes a morte, bastando para tanto verificar-se os índices alarmantes de jovens mortos, na grande maioria negros, no Brasil. Posto isto, vale dizer que na minha experiência, observei que salvo os dependentes de drogas e álcool, portadores de transtornos mentais e comportamentais não tratados ou que estejam em conflito com a lei, situações que, via de regra, geram muito conflitos no ambiente familiar; os demais que por ventura tenham desde a infância vivenciado a violência no seio de sua família, especialmente a do pai contra a mãe e irmãos pequenos, geralmente tem uma relação de enfrentamento do agressor. Passam a ser violentos com o agressor e muitas vezes se tornam pessoas mais violentas que o agressor familiar. No mais, as desigualdades sociais são grandes, a pressão para atingir os padrões de beleza, valorização e status social impostos pela sociedade de consumo são enormes, justamente na fase vulnerável da pessoa que é a adolescência, sendo que há falta de entendimento das demandas, compreensão e educação adequada dos jovens; falta de espaços públicos: esportivos, de lazer e culturais para que os jovens possas se manifestar. De outro lado, não há uma política pública séria, direcionada e comprometida com a juventude e que a eduque para a paz, resultando em graves impactos nas relações familiares.
MPD Dialógico: Em sua experiência, como converter casos de violência familiar para um ambiente mais pacífico?

Sueli Riviera: A violência doméstica provoca uma desestrutura familiar geradora de inúmeros problemas, incluindo a agressividade, baixa autoestima, evasão escolar dos filhos, dependência química (álcool e drogas), abandono do lar, distúrbios emocionais, raiva, desesperança, falta de perspectivas e etc. Quando chega nesse nível, torna-se muito difícil reverter o quadro e converter uma família violenta em família pacífica. Todavia, penso que várias medidas podem facilitar a mudança e prevenir a violência familiar: 1.Empoderamento das mulheres com a redução do analfabetismo, preparação para o mercado de trabalho, educação para o exercício da cidadania, fornecimento de vagas em creche e pré-escola para os filhos para que possam trabalhar sem provocar riscos aos filhos; 2. Criação de Centros de Aconselhamento familiar; 3. Disponibilização de ambientes públicos de lazer e cultura para as famílias, dentre outras.
MPD Dialógico: Em sua opinião, como a Justiça deve intervir nos variados casos de violência para promover a paz?

Sueli Riviera: A Justiça deve atuar de forma corajosa, célere, justa, rigorosa e eficaz para reprimir todos os atos de violência, inclusive aqueles cometidos pelo Estado e seus agentes quando viola direitos humanos. Deve fazer cumprir a Constituição e as Leis, obrigando o Estado a implementar as políticas públicas de cunho constitucional, especialmente as que envolvem direitos sociais.
MPD Dialógico: Há alguma consideração a mais que a senhora gostaria de acrescentar e que não foi tratado nestas perguntas?

Sueli Riviera: Gostaria de acrescentar que é de extrema importância que se resgate e se fortaleça o valor das diferentes famílias, nas escolas e na sociedade em geral no que tange a educação das crianças e adolescentes. Toda a sociedade participa dessa educação. Um ser humano não se faz sozinho! Se faz com a participação e o amor da família; com o empenho, preparo e dedicação dos professores e com o compromisso pela paz da sociedade em geral. A cultura de paz nas escolas e na sociedade, portanto, nada mais é do que o ensino da vida democrática de um povo e do resgate da ética, da moralidade, da igualdade, da honestidade, dos direitos humanos, da cidadania, do respeito às diferenças, da resolução pacífica dos conflitos e da convivência ambientalmente sustentável em sociedade. É a valorização do SER humano em desprestígio do TER humano; a valorização de um estilo de vida fraterno e solidário! É, em última análise, a formação de um ser politizado apto a viver de acordo com os dogmas impostos pela nossa Constituição Federal, autoconfiante para se expressar e conhecedor dos limites legais e das consequências dos seus atos, podendo assim conviver em sociedade com todas as diferenças de cor, raça, credo, sexo, gênero e etc., de molde a não agir com violência, respeitando a si mesmo e aos outros. O Ministério Público erigido como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF) tem um relevante papel que lhe foi reservado pela Carta Cidadã de 1988 e deve envidar todos os esforços necessários à efetiva implementação da Cultura de Paz nos moldes recomendados pela ONU. Acredito que podemos ensinar a PAZ. Esse é o grande desafio do nosso século e a melhor herança que poderemos deixar às futuras gerações.