O Sistema Único de Saúde (SUS), definido nos artigos 196 a 198 da Constituição da República de 1988, e normatizado de modo complementar, entre outras fontes, pelas Leis 8.080/90, 8.142/90, Decreto 7.508/11 e Lei Complementar 141/2012, que é integral e gratuito, ou seja, idealmente, deve fornecer tudo o que é prescrito de maneira justificada e sem nenhum tipo de cobrança, ainda que parcial, precisa ser analisado, cada vez mais, sob a perspectiva da gestão, da boa-fé objetiva como padrão de comportamento e do direito do cidadão à boa administração pública.

A gestão do SUS deve(ria) ser organizada, planejada, responsável e, sobretudo, eficiente. Para além disso tudo, exige-se do SUS, em todos os seus níveis federativos, municipal, estadual e federal, a necessária resolutividade.

A resolutividade, essa grande e esquecida “palavra-chave”, é um princípio do SUS, portanto, uma norma do sistema, que precisa(ria) ser respeitada. Assim impõe o artigo 7o, XII, da Lei 8.080/90: “XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência”.

Assim, se existem reclamações quanto ao excesso de judicializações, obviamente que nem todas promovidas de modo tecnicamente responsável e de acordo com critérios adequados (inclusão do paciente no SUS, prescrição por profissional do sistema salvo comprovada falta de acesso, prescrição justificada a partir de evidências e sinais concretos etc), é preciso questionar, de outro lado, até que ponto essas judicializações não decorrem da falta de disposição ou incapacidade administrativa de dar conta de resolver questões corriqueiras que ocorrem no sistema e que, por conta disso, precisam dispor de soluções ou alternativas de enfrentamento pela própria via administrativa.

Para ficar num exemplo relativo à assistência farmacêutica: a prescrição justificada e necessária de medicamentos fora de padrão por conta de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas desatualizados ou fora das listas de medicamentos. Afinal, qual é a verba orçamentária que, como necessidade de planejamento e de atendimento à realidade que grita no paradigma da vida, as Secretarias Municipais, Estaduais e o próprio Ministério da Saúde possuem para dar conta do atendimento desses casos excepcionais em que o padrão prescrito é insuficiente para atender ao paciente ou usuário do sistema no atendimento de seu direito à saúde?

É possível dizer que os entes federativos do SUS, muitas vezes, acabam estimulando o excesso de judicializações na medida em que são desorganizados, ineficientes, quando não verdadeiramente desinteressados na resolução do problema na esfera administrativa, preferindo assumir o risco de esperar as demandas judiciais, sabendo que muitas não virão por conta de deficiência de acesso à justiça? Trata-se, então, de um cálculo estatístico mesquinho de custo-benefício para depois colocar a “culpa” dos problemas do sistema na “judicialização” da política pública de saúde? Ou será que a reclamação quanto a judicialização excessiva é outra incoerência dos entes federativos que, a despeito da diretriz da prioridade à prevenção e atenção primária, inscrita no artigo 198, II, da Constituição, de maneira geral, insistem em canalizam esforços e os recursos materiais e humanos mais significativos para a média e alta complexidade? Quem é que está “mercantilizando” indevidamente o direito à saúde, o avanço da tecnologia ou a falta de organização, planejamento e eficiência dos entes federativos no SUS, que não dispõem de prontuários eletrônicos, que não respeitam os protocolos de referência e contrarreferência no tratamento fora do domicílio, que não atualizam protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas e que não se organizam sequer para cobrar, seja no plano administrativo ou judicial, as providências que cabem à respectiva esfera federativa primariamente responsável pela solução do problema? (e nesses casos não há como se deixar de falar de alguma solidariedade jurídica).

Como bem afirmou Leandro Farias, farmacêutico da Fiocruz e integrante de um interessante Movimento Chega de Caso) da sociedade civil que, bem cumprindo a proposta do artigo 198, III, da Constituição, objetiva estimular consciência crítica, inclusive no tocante à participação da comunidade no debate e construção do SUS, é possível afirmar que, não raras vezes, “a Justiça fica, com isso, sobrecarregada por demandas que poderiam ser facilmente resolvidas”.

Por que tantas judicializações na saúde? Qual é o limite da judicialização da saúde? E quando a judicialização da saúde é provocada pelo agir administrativo positivo ou negativo dos gestores do SUS em todos os níveis de atenção? Por que não um Fórum ou movimento para debater, de modo qualificado, a causa e origem da judicializações? Essas são perguntas a serem melhor investigadas tanto pelos meios de comunicação consequente como para os trabalhos de investigação científica. Qual é o seu palpite, caro leitor?

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013)