Por Márcio Berclaz

Do Ministério Público como instituição encarregada de exercer a titularidade da ação penal pública, nos termos do artigo 129, I, da Constituição da República de 1988, exige-se uma atuação de “magistratura em pé”, pautada por uma atuação qualificada pelo interesse público primário, que, dotada de uma adequada “teoria da decisão”, precisa conciliar a persecução penal com a defesa de direitos e garantias fundamentais, pois de outra forma não cumprirá sua missão de “defesa do regime democrático”, cada vez mais exigente de ressignificações.

Se processualmente não há como dizer que o Ministério Público não seja “parte”, como bem afirmado pelos principais processualistas penais, pelo menos no plano do dever-ser é de se esperar que a formação de convencimento jurídico-penal do arquivamento, da requisição de diligências, da verificação da justa causa para denúncia, da gestão da prova, da constante tensão entre liberdade e prisão, do zelo pela regularidade e validade do processo de modo a evitar nulidades, do manejo dos expedientes recursais e das ações autônomas de impugnação (inclusive habeas corpus), se dê de modo que, quando o membro do Ministério Público abre uma acusação, o faz com critérios de tradição, coerência e integridade, e, ainda assim, paradoxal e contraditoriamente sempre aberto a revisar ou desconstruir a própria pretensão acusatória inicialmente deflagrada ou os atos processuais praticados de acordo com seu interesse. Promove-se justiça e não condenações estatísticas ou matemáticas descriteriosas, assim haveria de ser. Defender a sociedade não é agir com mentalidade de Estado policial, mas sim respeitar barreiras, obstáculos e limites à violência estatal sempre implícita ao poder de punir que a própria história explica.

Ainda que se entenda que este deve ser o discurso, na prática, a distância deste “lugar” é grande. Denúncias forjadas sem justa causa, diligências requisitadas para confirmar a tese da investigação e não para aferir eventual insuficiência ou divergência de prova, arquivamentos que deixam de ser realizados quando assim deveriam ocorrer por exigência de tipicidade formal ou material, falta de controle da legalidade formal e material do flagrante, gestão da prova unilateral, complacência com nulidades, pedidos de prisão para resguardo de uma inconstitucional ordem pública ou pautados por argumentos-clichê, complacência com nulidades, falta de uso efetivo do habeas corpus para restabelecer liberdade, falta de recursos manejados também em defesa do réu, todas essas são questões e problemas presentes na atuação criminal do Ministério Público, ao ponto de muitos afirmarem que a pretendida atuação como “parte imparcial” não passa de uma fraude.

O que é, afinal, “fiscalizar a execução da lei” (artigo 257 do atual CPP) ou defender a “defesa da ordem jurídica e correta aplicação da lei” (artigo 257 do Anteprojeto de Novo Código de Processo Penal n. 156/2009)? Qual é o “lugar” do Ministério Público no processo penal? Acusador implacável ou parte qualificada que atua para defender direitos e garantias fundamentais de modo concomitante com o exercício do direito de punir estatal?

Ainda que o cenário careça de um mais detalhado e pormenorizado diagnóstico – daí a importância do papel da universidade e da academia, inclusive para que os alunos de graduação e pós-graduação desenvolvam pesquisas empíricas tendo como objeto este tema específico. Se tem um elemento que pode mudar esta compreensão, ele passa pelo aperfeiçoamento do processo de seleção e formação continuada dos membros do Ministério Público. Trata-se de desenvolver uma cultura que, dentro da estrutura acusatória do processo, passe, inclusive, pela compreensão de que o papel da instituição no âmbito do sistema criminal é também conter o poder persecutório estatal, mantendo-o dentro dos limites estritamente necessários e imprescindíveis. No olho do membro do Ministério Público, muito mais do que “sangue”, precisa ter a lente e os limites da Constituição. A distinção, para ficar com uma clássica dicotomia, entre os membros do Ministério Público “defensores da lei e da ordem” e “garantistas”, expõe uma fratura do primeiro grupo com o cumprimento da própria Constituição. Como disse-me o saudoso Luis Alberto Warat em contato pessoal que tivemos: “Mas Márcio, tem como ser membro do Ministério Público e não se dizer garantista?”. Sim Professor Warat, não só tem, como os “antigarantistas” ainda são, infelizmente, a esmagadora maioria. Até quando será assim?

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).