11 de junho de 2018, 8h00

Por Daniel Braga Bona

A contratação direta de escritórios de advocacia pela administração pública, notadamente por prefeituras, através da utilização do procedimento de inexigibilidade de licitação, é tema que tem suscitado profunda controvérsia, iniciada nas instâncias ordinárias com o ajuizamento de ações pelo Ministério Público e ultimada nos tribunais superiores, constantemente chamados ao enfrentamento da questão.

Trata-se da aplicação combinada dos artigos 13, V, e 25, II, da Lei 8.666/93, cuja constitucionalidade já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em algumas ocasiões, a exemplo da decisão exarada no Inquérito 3074 (2014), de relatoria do ministro Roberto Barroso. Com efeito, tratando-se de serviço técnico profissional especializado o trabalho relativo ao patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, sua aquisição pela administração pública pode ocorrer mediante o procedimento regulado nos artigos 26 e seguintes da lei de regência, prescindindo da realização de certame licitatório.

Até este ponto, dúvidas não há. Ocorre que o artigo 25, II, da Lei 8.666/93 prevê que certos requisitos precisam estar presentes para que a contratação direta dos serviços enumerados no artigo 13 do mesmo diploma não esteja eivada de ilegalidade: a) deve o serviço ter natureza singular (requisito objetivo); b) o profissional contratado tem que ser possuidor de notória especialização (requisito subjetivo); e c) a contratação direta é vedada para serviços de publicidade e divulgação (requisito negativo).

É de se notar, portanto, que a lei previu expressamente a possibilidade de contratação direta de escritórios de advocacia pela Administração Pública, exigindo, nada obstante, o preenchimento das condições acima alinhavadas. Pouco questionamento existe quanto à constitucionalidade da lei neste aspecto, tratando-se de autêntica exceção à regra constitucional da obrigatoriedade de licitar, inscrita no artigo 37, XXI, da Constituição Federal.

Ao longo dos anos, porém, proliferaram-se nos municípios de todo o país contratos realizados à revelia do procedimento licitatório sem que os requisitos legais estivessem presentes. Tornou-se lugar comum e prática reiterada a contratação direta visando à prestação de serviços advocatícios genéricos, como o simples acompanhamento processual e a emissão de pareceres.

A justificativa que sói ser utilizada reside na utilização de um pouco explicado critério da “confiança”. Neste sentido, seria a licitação inexigível por ser incompatível com a natureza subjetiva da contratação, porquanto a confiança depositada pelo gestor no profissional contratado restaria, em última instância, como elemento norteador da sua escolha, em contraste com a objetividade própria do certame licitatório.

Esta parece ter sido a orientação seguida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal Pública nº 348/SC, cuja relatoria coube ao Ministro Eros Grau. Uma leitura mais atenta do precedente, todavia, deixa claro que, a despeito de a confiança ter sido considerada critério autorizador da contratação direta, exigiu-se a sua conjugação com um dos requisitos do artigo 25, II, da Lei 8.666/93: a notória especialização.

A problemática, destarte, reside na definição do papel que a confiança possui enquanto elemento permissivo da contratação direta de escritórios de advocacia pela Administração Pública: pode ela, sozinha, justificar o afastamento da regra constitucional da licitação; ou deve estar, no mínimo, quando admitida a sua importância neste tipo de avença, em comunhão com os requisitos legais expressos?

A considerar os precedentes existentes nos tribunais superiores, que corroboram posição já assumida por outros órgãos, como a Procuradoria-Geral da República, a Advocacia-Geral da União e o Tribunal de Contas da União, a postura amplamente majoritária caminha no sentido de que a inexigibilidade de licitação, mesmo na contratação de patrocínio jurídico, não prescinde dos requisitos legais. Senão vejamos.

O Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que a contratação de advogados mediante procedimento de inexigibilidade de licitação deve ser devidamente justificada com a demonstração de que os serviços possuem natureza singular e com a indicação dos motivos pelos quais se entende que o profissional detém notória especialização.

A posição acima se encontra, inclusive, resumida na Jurisprudência em Teses nº 97, publicada no site do STJ. Inúmeros são os precedentes ali citados, a exemplo do AgInt no AgRg no Resp 1330843/MG, julgado em novembro de 2017, e do Resp 1505356/MG, julgado em novembro de 2016.

A mesma orientação é seguida pelo Tribunal de Contas da União, como nos Acórdãos 3.795/2013, 171/2005 e 137/1994. Mesmo o Enunciado 39/2011 da Súmula do TCU, ao admitir a confiança como parte inerente à contratação de serviços técnicos profissionais especializados, deixa expressa a indeclinabilidade dos requisitos legais.

Eis o texto do verbete sumular:

SÚMULA TCU 39 – A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular, capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação, nos termos do art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993.

Existem em curso no Supremo Tribunal Federal dois recursos cujo julgamento porá fim à discussão. São os Recursos Extraordinários 656.558, com repercussão geral reconhecida, e 610.523, de relatoria do ministro Dias Toffoli, o único, até o momento, a apresentar seu voto. O julgamento deverá ser retomado em conjunto com a Ação Declaratória de Constitucionalidade 45, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que veicula o mesmo tema.

Em seu voto, o ministro Dias Toffoli propôs a fixação de tese de repercussão geral, em que reconhece, dentre outras coisas, a constitucionalidade dos artigos 13, V, e 25, II, da Lei 8.666/93, admitindo a contração direta por inexigibilidade de licitação de escritórios de advocacia pela administração pública, desde que preenchidos os requisitos legais estabelecidos. Caso o voto do relator conduza à decisão colegiada, vencida estará qualquer tentativa de elevar a confiança a um status que não encontra eco no ordenamento jurídico: o de indiscutível e inabalável critério legitimador da contratação direta de patrocínio jurídico.

Por seu turno, no âmbito da já mencionada Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 45, manifestaram-se a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União no mesmo viés: a inexigibilidade do certame licitatório só tem lugar nas hipóteses de contratação de profissional de notória especialização para a realização de serviço advocatício de natureza singular, nos termos da lei de regência.

Em resumo, nenhum dos precedentes citados acima e nenhuma das manifestações declinadas admitem como suficiente para a contratação de escritório de advocacia a mera confiança do gestor, ao total arrepio das condições legais. Ora a aceitam em conjunto com os expressos requisitos da lei, ora sequer a mencionam.

De outro modo não poderia ser. É preciso ter em vista que as situações permissivas da inexigibilidade de licitação são exceções à regra constitucional da utilização do certame licitatório para contratações encetadas pela administração pública. Por conseguinte, ao intérprete não é lícito criar exceções não previstas em lei, nem ampliar aquelas de assento legal expresso, mormente em se tratando do afastamento de um comando normativo inscrito na Constituição Federal. Regra básica de hermenêutica exige que a intepretação das exceções deva dar-se de maneira sempre restritiva, não ampliativa, sob pena de se tornar regra a exceção e de se subverter a vontade constituinte.

Aceitar que a administração pública contrate escritórios de advocacia com base tão somente na confiança depositada no contratado subverte todo o sistema constitucional de contratação pública, sem nenhum amparo legal, deixando espaço aberto ao compadrio político e à escolha de profissionais sem nenhuma capacitação técnica para o exercício da função.

E vamos além. A rigor, o argumento, caso levado às últimas consequências, poderia respaldar a contratação direta de qualquer dos profissionais que realizem os serviços técnicos enumerados no artigo 13 da Lei 8.666/93. O que diferencia, quanto ao caráter personalíssimo, o trabalho de um advogado do trabalho realizado por um engenheiro ou auditor? Também estes estariam a autorizados à contratação direta sem se aventar quanto à singularidade do serviço e à notória especialização?

A vencer esta tese, a própria eficácia da Lei 8.666/93 estará sob risco de morte. O parágrafo 1º do seu multicitado artigo 13 é cristalino ao exigir, como regra, a realização de licitação pública na modalidade concurso para a contratação dos profissionais ali elencados, relegando a inexigibilidade às hipóteses excepcionais. Simplesmente permitir a contratação do profissional mais “confiável” segundo o julgamento do gestor é tornar letra morta também este dispositivo legal.

Por essa razão, parte da doutrina, em uníssono com alguns dos precedentes já indicados, passou a defender que a confiança até pode servir como vetor definidor da contratação, considerando a natureza personalíssima do serviço prestado, desde que mais de um escritório atenda aos requisitos legais. Em outros termos, nos casos em que para a prestação de um serviço jurídico singular exista mais de um profissional especializado, seria possível ao gestor escolher aquele que mais lhe inspira confiabilidade.

Trata-se de posição equilibrada e razoável: ao mesmo tempo em que prima pelo cumprimento da lei, concede ao administrador alguma margem de escolha, quando diante de mais de um fornecedor de serviços advocatícios que preenche os requisitos do artigo 25, II, da Lei 8.666/93. Sem prejuízo, assumir esta postura, indene de dúvidas, significa condenar à ilegalidade a esmagadora maioria dos contratos firmados nos mais diversos rincões do país, notadamente com Prefeituras Municipais, que não atendem a nenhuma das exigências legais.

Espera-se que com o julgamento dos Recursos Extraordinários 656.558 e 610.523, bem como da Ação Declaratória de Constitucionalidade 45, o Supremo Tribunal Federal ponha uma pá de cal no debate, prestigiando a Constituição Federal e garantindo a observância da moralidade e da impessoalidade administrativas na contratação de escritórios de advocacia pela Administração Pública, deixando no passado um odioso e antijurídico costume generalizado de desrespeito à Constituição Federal.

 é promotor de Justiça do Pará e membro do Movimento do Ministério Público Democrático

 

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