MP NO DEBATE

Cabe ao MP garantir que poder público atinja metas previstas no orçamento
20/06/2016
Dentre as inovações promovidas pela Constituição da República de 1988, merece destaque o acolhimento, em sede constitucional, dos direitos coletivos e dos direitos sociais. Em diversas passagens do texto da Carta Magna, vê-se esta consagração para os direitos do cidadão. Mas, transcorridos 28 anos da promulgação do texto constitucional, a realidade de ausência de prestação de serviços básicos e essenciais ainda é uma constante por parte do Estado brasileiro. Saúde, educação, transporte, segurança e moradia são uma fugaz miragem para largo espectro da população. Assim, como bem acentua Norberto Bobbio, em A era dos Direitos, o “problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, [é] não tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”.
Nesta esfera, a própria Constituição buscou, para além da proclamação e reconhecimento destes direitos sociais, criar mecanismos para a sua proteção. De um lado, através de ferramentas apropriadas para tal, as chamadas ações constitucionais — ação civil pública, ação popular, mandado de injunção e o mandado de segurança coletivo. Em outra mão, afetando determinados atores para o manuseio dessas ferramentas, legitimando-os para a sua propositura e, neste ponto, destaca-se a legitimação do Ministério Público. A Carta Magna, no artigo 127, incumbe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais, cuja função institucional é o de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (artigo 129, Inciso II).
O professor Hugo Nigro Mazzilli, na obra Regime Jurídico do Ministério Público, observa que “cabe ao Ministério Público exercer a fiscalização ou omissões dos poderes públicos e dos serviços públicos ou de relevância pública. Estando sujeitos a tal controle os poderes federais, estaduais ou municipais, observadas as atribuições de cada Ministério Público”. Como se vê, a Constituição da República, fiel aos seus próprios objetivos, propiciou aos operadores do Direito meios e modos para efetivação dos direitos sociais nela encartados, colorindo com as tinturas das prestações positivas de educação, saúde, assistência social, de dignidade humana a desbotada vida da parcela mais vulnerável da população brasileira.
Segundo dados colhidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, através dos Indicadores de Gestão e Atuação Funcional (CNMPIND), foram propostas nacionalmente pelo menos 14.738 ações civis públicas, sendo 4.201 na defesa do Meio Ambiente; 775 — ordem urbanística; 1.857 — patrimônio público; 7.285 — na defesa da Saúde; 620 — na defesa da Educação. Essas demandas, em sua maioria, têm no polo passivo o poder público e objetivam, no mais das vezes, a implementação de ações governamentais que, via de regra, importam em alocação de recursos financeiros para a sua execução. Em linha de defesa amplamente reconhecida pelo Judiciário, os entes públicos alegam a impossibilidade de cumprir com suas obrigações em face de limitação orçamentária, pugnando pelo reconhecimento e aplicação do princípio da reserva do possível.
Constantemente se lê e se escuta que o orçamento público é uma peça de ficção. Isto porque não tem ele um caráter impositivo. A execução das ações e programas ali previstos ficam, no plano concreto, a critério do Poder Executivo. Vale dizer, as obras e serviços previstos orçamentariamente saem do papel quando e se o gestor assim o desejar. Ao invés de atender uma demanda, o gestor opta por executar integralmente as dotações para publicidade das ações governamentais, não raro com o remanejamento de dotações para o seu atendimento. Tira-se dinheiro de A (ampliação da rede pública de ensino) para executar B (publicidade das ações governamentais). Esta situação, infelizmente, é assaz rotineira e quando se questiona judicialmente o poder Executivo sobre a sua omissão na implementação dos direitos sociais, lá vem os óbices acima apontados — reserva do possível e separação dos poderes.
Indaga-se como enfrentar a omissão do Estado em efetivar os direitos sociais sem cair nas escusas da reserva do possível e da separação de poderes? A resposta passa pelo cotejamento entre as demandas relativas aos direitos sociais pendentes de atendimento e as metas a elas relativas nas leis orçamentárias. Conforme estabelecido na Constituição da República, o ciclo orçamentário compreende a elaboração das seguintes leis: plano plurianual e suas revisões, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual. O plano plurianual, aprovado no primeiro ano de gestão do Executivo, estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. Já a lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.
Por fim, a lei orçamentária anual compreenderá o orçamento fiscal referente aos poderes, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público. Por imposição legislativa, os gestores são obrigados a quantificar metas em relação aos programas e ações governamentais incluídos nas leis orçamentárias. É fato, entretanto, que parte significativa dos entes públicos não detalha as metas em termos de unidades de atendimentos. Esta omissão dificulta o controle social e o controle externo, ao tempo em que permite manobras orçamentárias que drenam recursos do atendimento dos direitos sociais para a execução de ações ou programas governamentais de menor relevo.
Cumpre ao Ministério Público, estrategicamente, focar a sua atuação em duas linhas para garantir que as leis orçamentárias especifiquem as metas físicas a serem atingidas pela administração pública através das ações previstas nos seus respectivos orçamentos, bem como, na execução do orçamento, acompanhar a implementação dessas políticas públicas já definidas na Legislação Orçamentária. Tais medidas assegurariam maior transparência da Administração Pública e, ao mesmo tempo, permitiriam, nos casos de omissão na implantação de políticas públicas para atendimento aos direitos sociais previstos constitucionalmente, sua cobrança pela via judicial. Nesta última hipótese, restaria sem nexo os argumentos da reserva do possível e da separação dos poderes, posto que as medidas pleiteadas judicialmente seriam aquelas já definidas como prioritárias pelo Executivo (ao elaborar a proposta orçamentária) e aprovadas pelo Legislativo (ao aprovar a lei orçamentária).
(Este texto resume estudo cuja íntegra pode ser lida aqui no site do MPD)
Charles Hamilton Santos Lima é procurador de Justiça Regional da cidade de Caruaru (PE) e vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)
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Imagem: Reprodução/Senado Federal