21/12/2015

Por Salomão Ismail Filho

Uma vez assegurado determinado patamar de direitos sociais aos cidadãos, o Poder Público não poderá voltar atrás, impondo um “retrocesso” na qualidade de vida da população. Essa é a definição básica do princípio da vedação ao retrocesso social, cânone de origem alemã, o qual tem por objeto a proibição da revogação de leis que criem/implementem direitos fundamentais em benefício da comunidade.

A jurisprudência do Conselho Constitucional francês, através da decisão DC 83-165, de 20 de janeiro de 1984, tratando de direitos de liberdade no âmbito do ensino universitário (como a participação em conselhos científicos), e, posteriormente, na decisão DC 90-287, de 16 de janeiro de 1991, referindo-se expressamente aos direitos fundamentais relacionados com saúde e previdência social, decidiu em favor da vedação ao retrocesso social com fundamento no chamado effet cliquet, numa alusão a uma técnica de engenharia onde, atingido determinado processo/estágio de trabalho – o que se verificaria através de um “clic” — não se poderia mais retroagir a um estágio anterior.

Por conseguinte, em matéria de liberdades fundamentais e direitos sociais, não poderia haver a revogação de leis que tenham consagrado tais valores, sem que outras de igual envergadura viessem a substituir as normas revogadas.

Relaciona-se a vedação ao retrocesso social com os princípios da segurança jurídica e da máxima efetividade das normas constitucionais, sendo um dos corolários de um Estado Democrático que se propõe a ser também Social, sob o prisma da dignidade humana.

Inicialmente, a sua aplicação direcionou-se ao legislador. Ou seja, o que antes era uma obrigação positiva de legislar, integrando a efetividade do direito fundamental social instituído pela Constituição, tornou-se uma obrigação negativa, no sentido de não criar novas leis que alterem o curso de políticas e prestações sociais que estejam melhorando ou apresentem viabilidade de, no futuro, melhorar a qualidade de vida da população.

Parcela da doutrina, na qual nos incluímos, tem defendido a proibição do retrocesso social também para as atividades e decisões administrativas, quando de tais decisões puder resultar danos ao mínimo existencial que o Estado deve garantir a todos os cidadãos, contrariando as tarefas fundamentais propostas e os direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Ora, o Estado, através dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e órgãos a ele vinculados, onde se manifesta o poder soberano, em uma proposta de um Estado Democrático e Social de Direito, tem o dever de garantir um mínimo de dignidade humana aos seus cidadãos.

Tal dignidade manifesta-se através dos direitos fundamentais em uma perspectiva individual de liberdade e de um mínimo fundamental de direitos fundamentais em uma projeção social que permita ao indivíduo sobreviver com dignidade, tendo acesso à saúde, educação, alimentação, moradia e lazer, para, a partir de então, buscar acesso a outros direitos sociais, como o trabalho (vide, nesse contexto, o art. 6º, da CF/1988).

Deveras, a regra geral é que, atingido determinado patamar de qualidade de vida da população, não poderá haver um retrocesso a respeito das prestações e benefícios sociais implantados em benefício da coletividade, salvo situações justificadas de investimento em outras áreas sociais prioritárias e/ou excepcionais situações de crise.

A última ressalva, contudo, é extremamente perigosa, porque, em razão do seu grau de indeterminação, poderá ser invocada de forma aleatória, principalmente quando se tratar de governantes descomprometidos com o interesse público.

O argumento necessita, assim, encontrar uma justificativa no princípio da proporcionalidade e, se possível, no texto constitucional (que normalmente ressalva situações de guerra, estado de sítio, estado de emergência etc.) ou na sua legislação complementar.

Apresenta-se, pois, como necessário que o gestor público realize aquilo que a doutrina italiana chama de bilanciamento dei diritti, demonstrando: 1) a relevância constitucional da alteração proposta (ou seja, a sua relação com as normas constitucionais que regem a matéria); 2) a razoabilidade/proporcionalidade da medida proposta e, por fim, 3) que preservará o conteúdo essencial do direito fundamental sacrificado.

Eis, então, a importância de uma atuação proativa e eficiente do Ministério Público Ombudsman, isto é, Ouvidor e Promotor dos direitos constitucionais do Povo do Estado brasileiro. Porque, nos termos do inciso II do art. 129 da Constituição brasileira, incumbe ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.

Nesse passo, deverá o membro do Parquet zelar para que os decisores públicos e gestores políticos, em seus sucessivos mandatos e/ou quando substituírem uns aos outros, mantenham um “mínimo de existência condigna” ou o chamado núcleo essencial do direito fundamental social alterado.

Demais, a alteração legislativa ou administrativa deve vir acompanhada de uma justificativa razoável, demonstrada através de dados estatísticos, econômicos e orçamentários, baseada em ressalvas ou exceções contidas no próprio texto constitucional. Afinal, a tendência é que os novos governantes, principalmente se forem de um partido político opositor ao do gestor público anterior, queiram alterar todos os projetos e programas anteriormente estabelecidos, buscando implantar a “marca” da nova gestão e afastar a lembrança do antecessor.

Em razão da alternância de governo, própria dos regimes democráticos, é plenamente possível que haja a revisão de opções político-administrativas ou legislativas definidas em uma gestão anterior. O que não se pode admitir – e os membros do Ministério Público, máxime aqueles com atuação em cidadania, precisam estar bastante atentos a isso – é que tais revisões deixem de apresentar mecanismos de compensação aos direitos fundamentais com uma projeção social, eventualmente alterados por atos ou ações do novo governo.

Salomão Ismail Filho é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. MBA em Gestão do Ministério Público pela UPE. Especialista e Mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa.