Violência contra mulheres

Manifestação Pública do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático
MPD DENUNCIA INCONSTITUCIONALIDADE DE PL QUE AUTORIZA DELEGADOS DE POLÍCIA A DEFERIR MEDIDAS PROTETIVAS NO ÂMBITO DA LEI MARIA DA PENHA
Recém aprovado na Câmara dos Deputados, projeto de Lei de autoria do Deputado Sérgio Vidigal (PDT-ES) possibilita, ao delegado de polícia, a decisão sobre a aplicação das medidas protetivas previstas na Lei “Maria da Penha”. Para o Movimento do Ministério Público Democrático, este projeto de lei é inconstitucional e fere o princípio da tripartição dos Poderes ao permitir que a autoridade policial, que não é investida na função jurisdicional, aplique medidas de proteção de urgência e atropele os poderes constitucionais conferidos ao Poder Judiciário.
Infelizmente, o voto do relator da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), entende que esta autorização deve ser mantida. Para ele, “não sendo explícita a reserva de jurisdição quanto a atribuições protetivas da vítima mulher em situação de violência doméstica e familiar, não há cogitar a inconstitucionalidade material da presente proposta. Mesmo porque a concessão de cautelares pela autoridade policial, além de necessária, deverá ser referendada, complementada ou revogada pela autoridade judicial a posteriori e a qualquer tempo”.
Instamos aos integrantes do Senado Federal que rejeite o projeto de lei. Conclamamos a todas as entidades representativas da sociedade civil que se manifestem clara e fortemente contra a tramitação desta medida.
A suposta boa intenção desta lei (acelerar a concessão de medidas protetivas ao arrepio do devido processo legal), traz à tona quatro evidências de desrespeito à sociedade. Primeiro, pelo seu caráter meramente paliativo, sob o enganoso manto de fornecer maior agilidade e proteção às mulheres em situação de violência uma vez que a disposição legal já traz essa possibilidade – a de que o pedido deve ser encaminhado ao juiz em 48 horas; segundo, por ocultar a primordial necessidade de capacitar os profissionais da área de segurança pública na prestação de um atendimento especializado à vítima de violência de gênero contra a mulher, como se a decisão sobre as medidas protetivas dentro das delegacias significassem um atendimento de qualidade; terceiro, por camuflar as compreensão de que o enfrentamento à violência doméstica e familiar deve ser multidisciplinar e que apenas o sistema penal estaria apto a propiciar este enfrentamento; por fim, não observa as garantias de todos os personagens que envolvem uma decisão deste patamar, ensejando um perigoso precedente que abala as estruturas de base do Poder Judiciário de nosso país.
É importante contextualizarmos estas críticas. Uma das maiores queixas dos serviços que lidam com mulheres em situação de violência é a absoluta falta de humanidade no atendimento prestado ao registro das ocorrências. Mulheres que são mandadas embora dos distritos para “pensar melhor” antes de delatar seus companheiros, que são remetidas a “orações” a fim de que parem de apanhar, mulheres que são consideradas culpadas por sofrer violência porque estão, os funcionários das delegacias, “cansados” dos casos daquelas que “voltam atrás” e retomam o relacionamento com seus parceiros.
Muitas queixas dizem respeito à falta de informações sobre os direitos previstos na Lei “Maria da Penha”, à falta de acolhimento das mulheres em situação de violência, à falta do “olhar de gênero” neste atendimento, além da precariedade da estrutura para dar efetividade às funções que a lei determina à autoridade policial na ocasião do atendimento a esta vítima.
Desse modo, medidas protetivas deixam de ser encaminhadas no prazo legal à autoridade judiciária. As encaminhadas pecam pela precariedade de dados. As mulheres não são acompanhadas às suas casas para buscar seus pertences e muitas sequer sabem deste direito. Quando muito, se fala na possibilidade do fornecimento de transporte para abrigo ou local seguro quando houver risco de vida.A Lei Maria da Penha já traz dispositivos que colocam a autoridade policial em um patamar capaz de garantir uma urgente proteção à mulher em situação de violência. Antes de retirar do Poder Judiciário parte de suas funções elementares, é preciso que, no mínimo, tais normas sejam realmente efetivadas.
É inadmissível justificar a lentidão do Judiciário como a razão do deferimento das medidas protetivas pela autoridade policial, como prevê o Projeto de Lei. Isto não é, e nem deve ser, função de polícia.
O Superior Tribunal de Justiça já assentou entendimento de que tais medidas não são vinculadas ao inquérito policial ou qualquer ação judicial, pois um de seus requisitos não se atrela à prática de crime, bastando a situação de violência (REsp n. 1.419.421-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4a Turma, j. 11.2.2014).
A ausência de debate público sobre a alteração da Lei Maria da Penha com ampla consulta às organizações não governamentais, ao movimento de mulheres, à sociedade civil, revela um vício de origem e de legitimidade do referido projeto de lei.
Diante disso, o Movimento do Ministério Público Democrático manifesta a importância da preservação das funções institucionais para que direitos fundamentais não sejam sacrificados. Justificar na lentidão do sistema de justiça para criar mecanismos que maquiam a garantia de tais direitos não é proteger, mas abandonar o verdadeiro sentido do trabalho em rede que norteia o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.
São Paulo 15 de junho de 2016

MPD – Movimento do Ministério Público Democrático