Por Andre Luis Alves de Melo*
01/06/2023 | 05h00

Em todo o mundo, menos no Brasil, há discussão sobre o mito da obrigatoriedade da ação penal. No Brasil, apesar de a prescrição em processos criminais chegar a 60%, e em casos de violência doméstica chegar a quase 80%, uma vez que penas mínimas previstas no tipo penal são baixas; não há muito interesse em se discutir critérios para filtrar e focar nos casos mais relevantes e graves, independente do tipo penal, pois ainda tem o foco na ideologia do finalismo, a qual preceitua uma visão de analisar apenas o tipo penal, e tendo como indício qualquer elemento de suspeição.

Falar em prescrição é como se na área de saúde tivesse um alto gasto com hospitais em que morressem mais de 60% dos pacientes, mas ninguém falasse nada. Seria mais funerária do que hospital, mas como recebem verbas para manter estes pacientes, ninguém deseja discutir a causa da morte, pois morrendo ou vivendo a verba seria a mesma, e quanto mais mortes até melhor, pois mais a verba pode ser canalizada.

Ajuizando ações penais sem uma preocupação com a efetividade e resultados acaba beneficiando, implicitamente, o mercado jurídico com necessidade de mais recursos financeiros e pessoais. Notadamente, o meio mais beneficiado é a defesa, pois se arquivar não há necessidade de defesa. Talvez por isso não há forte debate por parte da defesa sobre o assunto, preferem focar em temas como lugar que o Promotor senta no júri ou na tramitação direta de Inquéritos Policiais entre Delegacia e Promotoria, exceto se tiver necessidade de medidas de quebra de sigilo. São temas de perfumaria jurídica, e que pouco interferem no real problema.

No entanto, a Europa e até demais países da América do Sul, exceto o Brasil, já adotaram em sua legislação critérios para filtro para ajuizamento de ação e também para acordos penais, e nem estes são obrigatórios em casos como baixo risco, pouco impacto da conduta ou do resultado, desinteresse da vítima em crimes patrimoniais sem violência, ausência de justa causa e interesse de agir como prescrição virtual. Essa teoria é conhecida como funcionalismo penal, a qual prevê uma seletividade e triagem fundamentada para uma maior eficiência.

No Brasil, o viés ideológico é evidente na legislação penal, pois crime de furto (geralmente cometido por pessoas com menos estudo ou menos inteligência) são de ação penal incondicionada (obrigatória), mas crimes cometidos por golpistas (estelionato), os quais são cometidos por pessoas mais inteligentes e/ou estudadas, em regra, é ação penal condicionada (depende da representação da vítima). E paradoxalmente, vão aos presídios e alegam que há muitos presos com pouco estudo e por crimes de furto. Ora, se temos mais pessoas com pouco estudo, teremos mais pessoas que cometem furtos e que serão presas, pois é mais fácil provar furto do que estelionato (golpe). Isso não significa que basta dar estudo aos criminosos para reduzir crimes, pois quem tem a vida criminosa como “opção profissional” continuará a cometer delitos mais elaborados e talvez nem seja presa, o que não significa menos crimes, apenas implica em menos prisões.

No cômputo de presos, não utilizam a média por cem mil habitantes e comparando com outros países, e neste caso alguns Estudos repudiados apontam que o Brasil seria o 35% país do mundo. Também não comparam com o número de ocorrências policiais, nem com o número de processos penais ativos. Logo, não se sabe se temos excesso de presos, excesso de processos penais ou excesso de crimes.

Contraditoriamente, acusam o Ministério Público de punitivismo, mas não abordam o mito de que o Estado é obrigado a processar. E ainda sustentam que o Estado é obrigado a defender, e em qualquer tipo de delito, mesmo sem risco de prisão, o que nenhum país no mundo, nem as nações mais ricas, sustentam. Afinal, na maioria, quando não há risco de prisão no processo criminal a defesa é facultativa, e geralmente, o Estado mantém convênios com a iniciativa privada. Alguns, alegam que esse modelo estrangeiro, Europeu, por exemplo, não funciona, mas nestes países o custo e o número de presos por habitante é menor considerando o índice por 100 mil habitantes. Ou seja, o Brasil adota modelo mais caro e que não se tem prova da eficiência.

Enquanto se discute tramitação direta de inquéritos policiais nada se fala sobre o que tem acontecido com quase 80% das ocorrências policiais que não são transformadas em Inquéritos Policiais ou Termos Circunstanciados de Ocorrências, ou seja, simplesmente desaparecem no limbo. Nem mesmo há um controle integrado sobre o número de ocorrências policiais, pois se alega que cada Estado faz a sua estatística. Ou seja, não se consegue fazer uma apuração entre o que ocorre de crimes e o que se processa nos feitos judiciais.

O único órgão que se interessou em apurar esta “cifra oculta” foi o IBGE, e relativo a crimes que nem são comunicadas aos órgãos de segurança pública. Mas, o meio jurídico não se interessou por esse dado, tanto é que nem mesmo é citado ou estudado oficialmente como forma de melhorias. Nem mesmo o número de ocorrências policiais que não se transformam em Inquérito Policial ou TCO, e nem há um despacho fundamentado e com publicidade sobre a motivação, afinal não desperta interesse no meio jurídico. O processo penal é tratado como uma ilha da fantasia e o meio jurídico está feliz com esta situação que não os prejudica.

Nesse contexto a obrigatoriedade resume-se na prática a obrigatoriedade de denunciar ou de propor acordos penais. Não se fala em obrigatoriedade de instaurar Inquéritos e TCOS, nem obrigatoriedade de recorrer.

Para denunciar basta indícios e a crença no “princípio de in dubio pro societate”, ou seja, na dúvida denuncia em prol da sociedade. Porém, qualquer suspeita passa a ser indício (o qual tecnicamente deveria ser mais que a mera suspeita). Na Europa todo Promotor faz a análise subjetiva da prova para verificar se há mais de 70% de chance de condenação, inclusive risco de prescrição, em razão do custo de uma demanda judicial para o Estado.

Mas, no Brasil é mais fácil denunciar e deixar que audiências de instrução sejam marcadas para casos de mais de 05 (cinco) anos, pois assim haverá um sentimento de dever cumprido, ainda que sem resultado algum em muitos casos, pois estarão prescritos, mas toda a máquina jurídica receberá os recursos financeiros.  E alguns ainda acreditam no Milagre de que prova ruim no momento da denúncia será melhorada no curso do processo.

Nessa confusão penal enquanto se discute juiz de garantias a um custo altíssimo e pouco resultado; temos juízes prendendo, investigando, mesmo contra a posição do Ministério Público, o órgão de acusação, uma situação que somente ocorre em países autoritários.

Soma-se a isso o fato de se ter que ouvir os policiais em juízo, mesmo que a Defesa não requeira, e isto para confirmarem o que já estão nos documentos policiais como se fossem mentirosos em 100% dos casos e precisassem confirmar o que escreveram. Até seria razoável se a Defesa questionasse de alguns dados, mas presumir que em 100% dos casos são mentirosos e que devem ser arrolados praticamente de forma automática para confirmarem o documento com fé pública, é paradoxal.

Nesse emaranhado de discurso e práticas retóricas no direito penal observa-se que arquivar o que a Polícia optou por instaurar Inquérito Policial ou TCO é muito mais difícil que denunciar, uma vez que para arquivar é preciso fazer uma análise profunda de toda a prova e da probabilidade de êxito, enquanto para denunciar basta alegar que existe o fato narrado resumidamente e que será provado no curso da ação. Logo, em regra, até para arquivar exige-se maior argumentação e número de páginas do que para denunciar. Afinal, a cultura jurídica também tende a considerar qualquer suspeita como indício suficiente para denunciar e apenas na fase do recebimento da denúncia é que a lei prevê o início de uma análise da prova, o que também raramente é feito na prática jurídica.

Temos mais de 1,6 mil tipos de crimes na legislação penal, e embora 80% das ações penais sejam por furto, tráfico e roubo, e em casos de pouco valor ou quantidade, isto não é debatido no meio jurídico. Criamos até infrações penais com pena de advertência, o que desmoraliza o próprio direito penal, pois o coloca como uma espécie de direito de assistência social, como no caso do art. 28 da lei 11340/06, usuários de entorpecentes. Ora, se não tem previsão de prisão, ainda que subsidiária, não é direito penal. Pode ser uma infração administrativa ou sanitária, mas direito penal não.

É preciso reforçar mecanismos para triagem fundamentada e transparente de atos criminosos que serão processados através de ação penal. Mas, não há interesse no meio jurídico, afinal quanto mais ações judiciais, mais verbas públicas e até mercado privado contratando.

Enfim, como leciona a filosofia: “para a maioria é melhor viver no oásis da ilusão, do que no deserto da realidade”. Só nos resta então parafrasear: “Deus tenha piedade de nós, eles não sabem o que fazem”. Se bem que às vezes há dúvidas se não sabem mesmo.

*Andre Luis Alves de Melo, promotor de Justiça em MG, doutor em Processo Penal Constitucional pela PUC SP e associado do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica