A efetivação dos direitos sociais e as meta definidas nas leis orçamentárias

 

Por Charles Hamilton dos Santos Lima, 1º procurador de Justiça Regional da cidade de Caruaru (PE) e vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)

 

 

Dentre as inovações promovidas pela Constituição da República de 1988, merece destaque o acolhimento, em sede constitucional, dos direitos coletivos e dos direitos sociais.

 

Em diversas passagens do texto da Carta Magna, vemos essa consagração. Aqui tem-se algumas:

 

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

 

(…)

 

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

 

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

 

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

 

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

 

IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

 

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

 

(…)

 

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

 

(…)

 

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

 

(…)

 

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

 

(…)

 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Nas palavras de Ulysses Guimarães – Presidente da Assembleia Nacional Constituinte – quando da sua promulgação, a Constituição de 1988 tipograficamente é hierarquizada (n)a precedência e (n)a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição[…] Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção. Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”. (grifos nossos)

 

Entretanto, como bem acentua Norberto Bobbio, em “A era dos direitos”, o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, [é] não tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.

 

A própria Constituição buscou, para além da proclamação e reconhecimento destes direitos sociais, criar mecanismos para a sua proteção. De um lado, através de ferramentas apropriadas para tal, as chamadas ações constitucionais (ação civil pública, ação popular, mandado de injunção e o mandado de segurança coletivo). Em outra mão, afetando determinados atores para o manuseio dessas ferramentas, legitimando-os para a sua propositura e, neste ponto, destaca-se a legitimação do Ministério Público.

 

Neste ponto, deve ser considerado o disposto no artigo 127 da Constituição da República – incumbe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais – e o contido no artigo 129, Inciso II – é função institucional do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.

 

Conforme observa Hugo Nigro Mazzilli, para o exercício das funções de que cuida o inc. II do art. 129, cabe ao Ministério Público exercer a fiscalização ou omissões dos Poderes Públicos e dos serviços públicos ou de relevância pública (sejam, pois, da administração direta ou indireta, assim incluídas as empresas públicas, as fundações públicas, as autarquias, os concessionários ou permissionários, as entidades que exerçam funções delegadas ou executem serviços de relevância pública, os meios de comunicação social, as agências reguladoras, como as de energia elétrica, telecomunicações, petróleo, vigilância sanitária, saúde, águas etc). Estão sujeitos a tal controle os Poderes federais, estaduais ou municipais, observadas as atribuições de cada Ministério Público.

 

Como se vê, a Constituição da República, fiel aos seus próprios objetivos insculpidos no artigo 3º (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.), propiciou aos operadores do Direito meios e modos para efetivação dos direitos sociais nela encartados, colorindo com as tinturas das prestações positivas de educação, saúde, assistência social, de dignidade humana a desbotada vida da parcela mais vulnerável da população brasileira.

 

Transcorridos vinte e seis anos da promulgação do texto constitucional, a realidade de ausência de prestação de serviços básicos e essenciais ainda é uma constante por parte do Estado brasileiro.

 

Saúde, educação, transporte, segurança e moradia são uma fugaz miragem para largo espectro da população.

 

Segundo dados colhidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, através dos Indicadores de Gestão e Atuação Funcional – CNMPIND, foram propostas nacionalmente pelo menos 14.738 ações civis públicas, sendo 4.201 na defesa do Meio Ambiente, 775 – ordem urbanística; 1.857 – patrimônio público; 7.285 – na defesa da Saúde; 620 – na defesa da Educação.

 

Essas demandas, em sua maioria, têm no polo passivo o poder público e objetivam, no mais das vezes, a implementação de ações governamentais que, via de regra, importam em alocação de recursos financeiros para a sua execução.

 

Em linha de defesa amplamente reconhecida pelo Judiciário, os entes públicos alegam a impossibilidade de cumprir com sua obrigações em face de limitação orçamentária, pugnando pelo reconhecimento e aplicação do princípio da reserva do possível.

 

Conforme os ensinamentos do professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo, Fernando Facury Scaff, observa-se que:“os economistas possuem uma expressão bastante interessante, denominada ‘Limite do Orçamento’, que Amartya Sen, com sua perspicácia habitual, comenta como sendo ‘onipresente’, pois ‘o fato de que cada consumidor deva fazer suas escolhas não significa que não existam limites orçamentários, mas simplesmente que a escolha deve ser feita internamente ao limite orçamentário ao qual cada indivíduo deve adequar-se. Aquilo que vale para a economia elementar vale também para a decisão política e social de alta complexidade’[…]. Esta expressão foi trasladada para o Direito a partir de uma decisão proferida em 1972 pelo Tribunal Constitucional alemão, com o nome de ‘Reserva do Possível’. O significado é o mesmo: todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com exigências de harmonização econômica geral. Desta forma, ao decidir pela inconstitucionalidade da limitação de vagas imposta pela Universidade da Baviera, o Tribunal Constitucional Alemão entendeu que existe uma limitação fática, condicionada pela reserva do possível, no sentido do que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. Isso deve ser avaliado em primeira linha, pelo legislador, em sua própria responsabilidade. Ele deve atender, na administração de seu orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando as exigências da harmonização econômica geral’”.

 

Convém levar em consideração que a realidade na qual a dita teoria da Reserva do Possível é bem distinta da nossa. Com efeito, a implementação de políticas públicas para atendimento dos direitos sociais em países mais desenvolvidos não guarda similitude com o nosso caso, isto em decorrência da enorme desigualdade social que ainda vivenciamos.

 

Andreas Krell, na sua obra Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um Direito Constitucional Comparado, expõe este descompasso nos seguintes termos: Os problemas de exclusão social no Brasil de hoje se apresentam numa intensidade tão grave que não podem ser comparados à situação social dos países-membros da União Européia. Pensando bem, o condicionamento da realização de direitos econômicos, sociais e culturais à existência de “caixas cheios” do Estado significa reduzir a sua eficácia a zero; a subordinação aos “condicionantes econômicos” relativiza sua universalidade, condenando-os a serem considerados “direitos de segunda categoria. Num país com um dos piores quadros de distribuição de renda do mundo, o conceito de “redistribuição” (Umverteilung) de recursos ganha uma dimensão completamente diferente. Não é à toa que os estudiosos do Direito Comparado insistem em lembrar que conceitos constitucionais transplantados precisam ser interpretados e aplicados de uma maneira adaptada para as circunstâncias particulares de um contexto cultural e sócio econômico diferente, o que exige um máximo de sensibilidade. O mundo “em desenvolvimento” ou periférico, de que o Brasil (ainda) faz parte, significa uma realidade específica e sem precedentes, à qual não se podem descuidadamente aplicar as teorias científicas nem as posições políticas trasladadas dos países ricos. Assim, a discussão européia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado Providência nunca foi implementado.

 

Em relação à temática da Reserva do Possível, é oportuna a leitura do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal quando da apreciação da ADPF nº 45/DF, cujo o relator foi o ministro Celso de Mello:

 

Ementa: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). (STF, ADPF n. 45 – MC/ DF, rel. min. Celso de Mello, j. em 29.4.2004, DJ de 4 maio 2004, p-00012).

 

Merece registro ainda o seguinte trecho dos fundamentos do relator em sua manifestação: Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

 

Inobstante os parâmetros expostos na decisão acima referida, não é incomum a utilização à larga da escusa da Reserva do Possível para desoneração dos entes públicos daquelas prestações definidas constitucionalmente, contando inclusive com a guarida do poder Judiciário em aceitá-la quando da apreciação das demandas para a efetivação dos direitos sociais.

 

Na verdade, em face da ainda baixa transparência no que se refere à execução orçamentária (situação que vem sendo revertida desde a promulgação da Lei de Acesso à Informação em que pese a recalcitrância de muitos entes públicos em disponibilizar os seus dados orçamentários), a realidade dos orçamentos públicos no Brasil é, para usar a expressão de Churchill, é uma charada envolvida em mistério que fica dentro de um enigma. Neste ponto, ante o monopólio das informações orçamentárias pelo poder Executivo, o Judiciário termina por ser excessivamente cauteloso em atender as demandas que envolvam a efetivação em larga escala dos direitos sociais através da implementação de políticas públicas em larga escala.

 

Cabe aqui as observações de Joaquim Falcão por ocasião dos debates relativos à democratização do Judiciário travados à época da Assembleia Nacional Constituinte. Sustentava ele que a democratização do acesso ao Judiciário não viria (apenas) de seu aparelhamento com mais juízes e servidores, instalações e equipamentos. Impunha-se, sobretudo e urgentemente, uma mudança de cultura, passando (o sistema de Justiça) a considerar as implicações de conflitos gerados em  uma sociedade de massa – como é o caso da sociedade brasileira a partir da segunda metade do século XX – e a necessidade de ser olhos, ouvidos e mentes abertos para esta realidade quando do exercício da atividade jurisdicional. O padrão de conflituosidade posta a ser solucionada pelo Judiciário migra de individual para coletivo. Passados os anos e mesmo sendo a maioria dos operadores jurídicos atores formados e forjados no novo modelo constitucional, remanesce o olhar enviesado, no qual prepondera a leitura individual dos casos em prejuízo da abordagem coletiva.

 

Assim, quando a prestação de determinado direito social previsto constitucionalmente é exigida de forma individual – o que não exige dispêndio significativo de recursos – o judiciário atende mais facilmente do que nos casos em que a mesma demanda lhe chega por meio de ações coletivas – nas quais os aportes de recursos orçamentários se dá em patamares superiores.

 

Noutra ponta, outro óbice levantado pelos gestores é o da Separação de Poderes, por intermédio do qual não caberia ao Judiciário substituir o Executivo na escolha e na oportunidade da implementação das políticas públicas.

 

Segundo Paulo Bonavides, o princípio da separação dos Poderes tem como virtude limitar e controlar poderes, refreando assim a concentração de sua titularidade num único órgão ativo da soberania. A concentração seria, sem dúvida, lesiva ao exercício social da liberdade humana em qualquer gênero de organização do Estado. Titular exclusivo dos poderes da soberania na esfera formal da legitimidade é tão-somente a Nação politica organizada, sob a égide de um Estado de Direito.

 

Entretanto, deve ser destacado que a separação dos Poderes não é um fim em si mesmo e, assim sendo, deve a sua aplicação se dar observando o conjunto do texto constitucional. Neste diapasão, vale recorrer a outro trecho da fundamentação do ministro Celso de Mello quando da apreciação da ADPF nº 45/DF:

 

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política “não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

 

Assim, tem-se com frequência a arguição de tais óbices à implementação de políticas públicas por meio de ações coletivas em franco prejuízo de parcela significativa da população, a qual se vê tolhida na concretização de direitos mínimos para uma existência digna conforme preceitua a Constituição cidadã.

 

Constantemente se lê e se escuta que o orçamento público é uma peça de ficção. Isto porque não tem ele um caráter impositivo. A execução das ações e programas ali previstos ficam, no plano concreto, a critério do poder Executivo. Vale dizer, as obras e serviços previstos orçamentariamente saem do papel quando e se o gestor assim o desejar.

 

A título de exemplo, tomemos a ampliação da rede pública de ensino de um determinado ente da federação. Por vezes, há previsão na Lei Orçamentária anual de ampliar o número de vagas no sistema educacional, entretanto as ações concretas para a sua realização, embora previstas, não são tomadas. Ao invés de atender tal demanda, o gestor opta por executar integralmente as dotações para publicidade das ações governamentais, não raro com o remanejamento de dotações para o seu atendimento. Tira-se dinheiro de A (ampliação da rede pública de ensino) para executar B (publicidade das ações governamentais). Esta situação, infelizmente, é assaz rotineira e quando se questiona judicialmente o poder Executivo sobre a sua omissão na implementação dos direitos sociais, lá vem os óbices acima apontados – reserva do possível e separação dos poderes.

 

Assim resta a indagação: Como enfrentar a omissão do Estado em efetivar os direitos sociais sem cair nas escusas da reserva do possível e da separação de poderes?

 

A resposta, ao nosso ver, passa pelo cotejamento entre as demandas relativas aos direitos sociais pendentes de atendimento e as metas a elas relativas nas leis orçamentárias.

 

Conforme estabelecido na Constituição da República, o ciclo orçamentário compreende a elaboração das seguintes leis: plano plurianual e suas revisões, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual.

 

O plano plurianual, aprovado no primeiro ano de gestão do Executivo, estabelecerá , de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.

 

Já a  lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

 

Por fim, a lei orçamentária anual compreenderá o orçamento fiscal referente aos Poderes, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público.

 

Por imposição legislativa, os gestores são obrigados a quantificar metas em relação aos programas e ações governamentais incluídos nas leis orçamentárias.

 

É fato, entretanto, que parte significativa dos entes públicos (ainda) não detalham as metas em termos de unidades de atendimentos. Esta omissão dificulta o controle social e o controle externo, ao tempo em que permite manobras orçamentárias que drenam recursos do atendimento dos direitos sociais para a execução de ações ou programas governamentais de menor relevo.

 

Ante tal realidade, cumpre ao Ministério Público, estrategicamente, focar a sua atuação em duas linhas:

 

  1. Garantir que as Leis Orçamentárias especifiquem as Metas Físicas a serem atingidas pela Administração Pública através das Ações previstas nos seus respectivos orçamentos;
  2. Na execução do orçamento acompanhar a implementação dessas políticas públicas já definidas na Legislação Orçamentária.

 

Tais medidas assegurariam maior transparência da Administração Pública e, ao mesmo tempo, permitiria, nos casos de omissão na implantação de políticas públicas para atendimento dos direitos sócias previstos constitucionalmente, a sua cobrança pela via judicial. Nesta última hipótese, restaria sem nexo os argumentos da reserva do possível e da separação dos poderes, posto que as medidas pleiteadas judicialmente seriam aquelas já definidas como prioritárias pelo Executivo (ao elaborar a proposta orçamentária) e aprovadas pelo Legislativo (ao aprovar a lei orçamentária).

 

Deste modo, pode-se concluir esta tese com as seguintes assertivas:

 

a)   A efetivação dos direitos sociais previstos constitucionalmente permanece ainda um desafio em face de constantes omissões do Poder Público;

b)   Quando acionado judicialmente, o Poder Público utiliza os argumentos da Reserva do Possível e da Separação dos Poderes para mascarar a sua omissão;

c)   O poder Judiciário, malgrado o modelo constitucional hoje vigente, permanece refratário a um olhar adequado aos padrões coletivos de litigiosidade e, não raro, dá guarida as escusas do Poder Público em implementar as políticas públicas que garantam e efetivem os direitos sociais previstos constitucionalmente;

d)   Estrategicamente, caberia ao Ministério Público utilizar as metas previstas nas leis orçamentárias para garantir a implantação dessas políticas públicas.

 

 

Referências Bibliográficas:

 

Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos.  Editora Campus. 7ª tiragem.

 

Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. Malheiros. 21ª edição.

 

Falcão, Joaquim. A Favor da Democracia. Edições Bagaço. 1ª edição.

 

Garcia, Emerson. Ministério Público – Organização, Atribuições e Regime Jurídico. Lumen Juris Editora. 2ª edição;

 

Guimarães, Ulysses. Discurso por ocasião da promulgação da Constituição da República em 05 de outubro de 1988. Disponível em http://bit.ly/1PJtnha.

 

Indicadores de Gestão e Atuação Funcional – CNMPIND do Conselho Nacional do Ministério Público – disponível em http://aplicativos.cnmp.mp.br/cnmpind/relatorio/relatorioGeral.jsf

 

Krell, Andreas. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um Direito Constitucional Comparado. Sérgio Antonio Frabis Editor.

 

Mazzilli, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. Editora Saraiva. 6ª edição.

 

Scaff, Fernando Facury. Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas. Disponível em http://bit.ly/1QNQ7Pf

 

 
Imagem: Arquivo/Senado