Estupro: crime e consentimento

01/06/2016

Por Fabiana Dal’Mas Rocha Paes
Na Índia, estupro coletivo de uma jovem que ia ao cinema com amigo acabou com a morte da jovem e a prisão dos culpados. Este crime motivou a produção do filme “A Filha da Índia”, de Lesllee Uwdowin, que mescla cenas do horror sofrido pela jovem, que lembram os fatos reais, com depoimentos de familiares da vítima, dos advogados e dos estupradores.
No Brasil, após a barbárie do caso da jovem do Rio de Janeiro que foi estuprada por cerca de trinta homens, tendo sua imagem exposta nas redes sociais, traz ao debate a penalização do estupro, o aborto legal para o caso de estupros e a necessidade de uso do contraceptivo de emergência. O Congresso Nacional debate o aumento de penas para o estupro coletivo e mudanças legislativas. Contudo, o Presidente Michel Temer, após críticas pela falta de nomeação de mulheres para os Ministérios, escolheu a Deputada Federal Fátima Pelaes para o cargo de segundo escalão de Secretária de Políticas para as Mulheres, que já havia se manifestado de forma contrária ao aborto legal em casos de estupro.
Em que pese à existência de leis a respeito da prática de estupro, a pergunta que permanece é por que os estupradores continuam praticando crimes sexuais, e pior, por que eles não se arrependem? Há evidências de que não se arrependem porque a vítima é sempre colocada na história como a “culpada” pelo estupro. Parece que isso não é diferente no caso da jovem carioca. Um aspecto a ser destacado é que, se não houve consentimento, a vítima nunca pode ser vista como culpada nesses crimes.
Ouvi certa vez, numa audiência de estupro de uma criança de quatro anos, o relator estarrecedor do estuprador, o avô de sessenta anos, que alegou que a sua neta estava usando um “short”, e que por esta razão o estava provocando sexualmente.
A cultura machista e patriarcal que ainda trata a mulher como um objeto não é uma característica exclusivamente brasileira, e sim de muitos países que permanecem atrasados quanto ao empoderamento da mulher, a prática de violência de gênero e a efetivação das leis e tratados referentes aos Direitos Humanos das Mulheres.
No enquanto, podemos afirmar que o caso brasileiro não acompanha a tendência mundial, não apenas dos costumes, mas da evolução da jurisprudência e da legislação, no sentido necessário de garantir os direitos fundamentais às mulheres vítima de violência.
A Constituição brasileira assegura a igualdade entre todos os brasileiros, sendo vedada qualquer forma de discriminação (artigo 5º). A violência sexual, o estupro, é uma forma de discriminação. A interpretação da lei não pode ser feita de forma literal, mas sim deve levar em conta todo o sistema jurídico, inclusive o texto constitucional e os tratados internacionais que foram ratificados pelo Brasil, como a Convenção CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) — e todos vedam a discriminação e a violência contra a mulher.
Como o Estado brasileiro é laico, não se pode admitir quaisquer interferências religiosas na formulação de regramentos jurídicos. Não podemos concordar com eventuais retrocessos no que diz respeito aos pontos que já avançamos. Assim, o aborto legal, em caso de estupro é um direito previsto no direito positivo brasileiro, devendo ser assegurado às mulheres. Não é possível obrigar uma menina ou uma mulher vítima de violência a ser violada uma vez mais com a obrigação de que esta gere um filho que não desejou. As verdadeiras democracias protegem toda a população, até os grupos mais vulneráveis, em especial protege todas as meninas e mulheres, de todos os grupos étnicos/raciais, origem, que vivem na favela ou em qualquer local.
Neste momento, temos que escolher entre caminhar para os valores civilizatórios do século 21 ou retroceder para as práticas desumanas do passado. Se optarmos pela civilização, há um largo caminho a ser percorrido para assegurar os direitos das mulheres. O próximo passo é o combate da cultura machista e de discriminação de gênero nas escolas e a capacitação dos agentes públicos para que estes ofereçam às vítimas um tratamento digno, expandirmos a contracepção de emergência para casos de estupro. Temos que ter a consciência de que não podemos retroceder nos avanços já conquistados, tais como o aborto legal em caso de estupro. Ainda subsistem a intolerância, o machismo e a violência contra a mulher. Ultrapassados estes obstáculos, poderemos afirmar que respeitamos as mulheres e seus direitos.
Fabiana Dal’ Mas Rocha Paes é diretora do MPD Ministério Público Democrático, Promotora de Justiça no Estado de São Paulo no GEVID/Norte (Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica), Mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela Universidade de New South Wales, Austrália e Doutoranda na Universidade de Buenos Aires, Argentina.
Imagem: banco de dados da internet/Global Voices
Texto também publicado no Jornal do Brasil – leia aqui.