07/11/2015

Por Rogério Alvarez de Oliveira e Wanessa Gonçalves Ribeiro da Silva

O delito de lavagem de dinheiro se iniciou, primordialmente, com as “lavanderias” de Al Capone e Meyer Lansky resultantes da proibição de bebidas alcoólicas nos anos trinta nos Estados Unidos, com o objetivo de legitimar e justificar as origens espúrias de seus ativos.
Nascido em Nova York em 1899, no Brooklyn, de ascendência italiana (Nápoles), Alphonse Capone assumiu o controle do crime organizado na cidade de Chicago, e no final da década de 20 enriqueceu, principalmente, com a venda ilegal de bebidas alcoólicas.

Os agentes do fisco norte-americano, examinando a movimentação bancária e os hábitos de consumo de Capone, caracterizados pelos “sinais exteriores de riqueza”, constataram a sonegação fiscal do criminoso, delito que fora reconhecido em sentença condenatória no dia 24 de outubro de 1931, além do descobrimento de indícios e provas referentes a diversos delitos mais graves, mas que não podiam anteriormente ser provados devido à intimidação e desaparecimento de testemunhas.

Assim, não fosse um pequeno deslize tributário de Al Capone, teria ele, talvez, ficado impune com relação a diversas condutas como o contrabando de bebidas alcoólicas e associação criminosa, o que nos mostra que é essencial a criminalização de delitos que permitam a alteração da roupagem de ativos, como a lavagem de dinheiro.
Segundo consta do artigo 1º da Lei 9.613/1998, a lavagem de dinheiro consiste na ocultação e dissimulação da origem ilícita de recursos que, posteriormente, são utilizados como investimentos, sustentando, num círculo vicioso, a prática permanente de delitos.

Assim, recuperar os valores provenientes de infrações penais que foram ocultados ou dissimulados significa não somente combater a lavagem de dinheiro, mas, também, manter a integridade da administração da Justiça, pois, em se evitando o “mascaramento” de valores ilícitos, restará prejudicada a própria estrutura criminosa.

O PL 2960, que fora idealizado pelo Executivo como um dos instrumentos das medidas do ajuste fiscal, criou o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), que prevê a arrecadação de até R$ 150 bilhões com a repatriação de ativos lícitos não declarados no exterior, já que, para “internalizar” os ativos, as pessoas físicas ou jurídicas deverão pagar multa fixa de até 35% sobre o valor declarado.

Segundo parecer do ministro Joaquim Levy, “os recursos patrimoniais que hajam sido transferidos ou mantidos no exterior, inclusive aqueles já repatriados ao país, não declarados por residentes no país, pessoas físicas ou jurídicas, desde que de origem lícita, poderão ser devidamente declarados aos órgãos fiscais e regulatórios brasileiros e, após o pagamento do tributo e da multa correspondente, receberão tratamento regular perante o Estado.

Referido PL incorpora a proposta original do PL 298/2015, que tramitou no Senado Federal, de autoria do senador Randolfe Rodrigues, e de seu substitutivo de autoria do senador Delcídio do Amaral.

Foi salutar a aprovação nominal por 351 votos a 48, da emenda ao PL 2960, pois veda a políticos e detentores de cargos eletivos, assim como seus parentes, a adesão ao programa de regularização de bens e ativos no exterior, com o fito de evitar uma possível anistia a alguns réus da operação “lava jato”.

Segundo a Agência Câmara Notícias, são anistiados pelo PL 2960/2015 os crimes de falsa identidade para operação de câmbio e de evasão de divisas, previstos na Lei 7.492/86, assim como o delito de lavagem de dinheiro previsto na Lei 9.613/1998, crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 8.137/1990; sonegação fiscal disposta na Lei 4.729/1965; falsificação de documento público, falsificação de documento particular, falsidade ideológica, descaminho e sonegação de contribuição previdenciária, todos previstos no Código Penal, já que o artigo 5º, parágrafo 1º, prescreve que a adesão ao programa com o pagamento integral do imposto acarreta a extinção da punibilidade.

Levy argumentou em seu parecer sobre o PL que não faria sentido extinguir a punibilidade do delito de sonegação fiscal e não o faze-lo com relação aos crimes conexos de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, o mesmo se estendendo aos delitos de falso, desde que exaurida a potencialidade lesiva do documento.

No entanto, a questão não se faz tão simples e clara quanto parece. Diferentemente dos delitos de evasão de divisas, sonegação fiscal e crimes de falso, o crime de lavagem de dinheiro consiste em ocultar ou dissimular a origem de outros delitos, e, em que pese tal crime ser autônomo e independente, a sua extinção, obviamente, prejudicará a colheita de provas dos delitos antecedentes, já que os documentos comprobatórios do “iter criminis” da lavagem dos ativos não poderão ser utilizados devido à adesão do réu ao RERCT.

Faz-se necessário continuar a análise do referido PL. Prescreve seu artigo 1º, parágrafo 2º, que “os efeitos da Lei serão aplicados somente aos titulares de direito ou de fato que, voluntariamente, declararem os recursos, bens ou direitos, acompanhados de documentos e informações sobre sua identificação, sendo que não se aplica aos sujeitos que, na data de sua publicação ou no momento da apresentação da declaração de que trata o artigo 5º, tiverem sido condenados em ação penal, com decisão transitada em julgado, cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do artigo 5º e se refira aos recursos, bens ou direitos a serem regularizados pelo RERCT”.

Ora, a exigência da sentença transitada em julgado para que se afaste a aplicação do PL facilita a anistia dos delitos supramencionados, já que o duplo grau de jurisdição, garantia implícita na Constituição Federal de 1988, nos artigos que prescrevem as competências dos Tribunais Superiores, e explícita no Pacto de San José da Costa Rica, por diversas vezes se torna instrumento de retardamento do processo.

Obviamente, o duplo grau de jurisdição deve ser exercido mediante o contraditório e a ampla defesa, no entanto, conforme nos ensinou o jurista inglês James Mathew, “Justice is open to all, like the Ritz Hotel”.
Tal questão nos remete, inevitavelmente, à Teoria da Associação Diferencial de Edwin Sutherland, primeiro teórico de uma teoria geral da criminalidade “dourada”, jurista norte-americano que iniciou os estudos dos crimes do “colarinho-branco”, conceituando-o como “um crime cometido por uma pessoa respeitável, e de alta posição (status) social de Estado, no exercício de suas ocupações”.

Soa inocente acreditar que um agente que deseja “internalizar” ativos acima de R$ 10 mil não esteja amparado por uma equipe de diligentes patronos que jamais deixarão processos criminais anteriores transitarem em julgado, o que prejudicaria a anistia do referido PL.

O PL 2960 ratifica o pensamento de Sutherland: o pagamento voluntário de 30% do valor a ser repatriado à título de multa, anistia os delitos supramencionados, o que impulsiona a ideia do delito como objeto de aprendizagem (leis de imitação), e referido mimetismo, por sua vez, é acompanhado de justificações de conduta, como legitimar a prática da evasão de divisas e da sonegação fiscal para impulsionar o ajuste fiscal.
Importante é o artigo 2º do PL, que conceitua os recursos de origem lícita como sendo “os bens e os direitos adquiridos com recursos oriundos de atividades permitidas ou não proibidas pela lei, ressalvado o objeto, o produto ou o proveito dos crimes previstos no § 1º do artigo 5º” (os delitos supramencionados que serão objeto de anistia).

Salutar, também, a ressalva prevista no artigo 3º, parágrafo único, onde se lê que o RERCT não se aplica no que concerne à “internalização” de joias, pedras preciosas, obras de arte, antiguidades de valor histórico ou arqueológico, semoventes e demais bens móveis não sujeitos a registro, bens que podem ser objeto de sobrepreço, já que o mercado de arte é utilizado no mundo inteiro para a lavagem de dinheiro.
Segundo o site GGN, “durante a operação “lava jato”, a Polícia Federal apreendeu centenas de obras de artes suspeitas de terem sido usadas para lavar dinheiro. Nesta quinta-feira (19/03), 139 peças recolhidas na décima fase da investigação foram destinadas ao Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Só na casa do ex-diretor da Petrobras Renato Duque, a PF encontrou 131 obras”.

Referida ressalva também confirma a importância da recém lançada obra do desembargador federal Fausto Martins de Sanctis, Lavagem de dinheiro por meio de obras de arte – uma perspectiva judicial criminal, segundo o qual “hoje é mais difícil transportar dinheiro em espécie do que a obra de arte. Num tubo pode ser colocada uma obra que vale 8 milhões ou 10 milhões de dólares e ninguém se dá conta. Não há, no mundo inteiro, preparação por parte das autoridades alfandegárias e por parte das autoridades da receita federal”.

Igualmente, as joias, outro bem ressalvado no parágrafo único do artigo 3º, servem de instrumento para a lavagem de dinheiro, pois de acordo com o Conselho de Atividades Financeiras (Coaf) – Unidade de inteligência Financeira, vinculada ao Ministério da Fazenda, o setor joalheiro é um dos setores identificados como potencialmente adequado para lavagem de dinheiro e regularização de recursos provenientes de atividades ilícitas.
Por tal razão, o Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (IBGM), lançou, inclusive, a 2ª edição do Guia de Prevenção a Lavagem de Dinheiro no Setor Joalheiro, e o Coaf iniciou a aplicação da Averiguação Eletrônica de Conformidade (Avec), com o fito de regularizar o comércio de pedras preciosas, evitando a fixação de valores subjetivos e a consequente lavagem de dinheiro advinda disso.

Ainda, a mesma instrumentalidade no que concerne à lavagem de dinheiro se aplica à antiguidades de valor histórico ou arqueológico e semoventes, tendo em vista que referidos bens adquirem altos valores subjetivos sem qualquer justificação.

Outra questão interessante se encontra no artigo 4º, parágrafo 3º, onde se lê que: “A regularização de ativos financeiros no exterior deverá ocorrer por intermédio de instituição financeira autorizada a funcionar no País à vista das informações prestadas pelo contribuinte, nos termos dos incisos I a IV do § 1º, sempre que o montante a ser regularizado for superior a USD 100.000,00 (cem mil dólares norte-americanos), tendo em vista que a repatriação de ativos neste caso dependerá do auxílio da instituição financeira que guarda tais valores”.

Também é pertinente ressaltar que o mesmo artigo 4º, em seu parágrafo 4º, prescreve que a “regularização de ativos mantidos em nome de interposta pessoa estenderá a ela a extinção de punibilidade do artigo 5º, nas condições previstas no referido artigo”, ou seja, que a anistia do delito se estenderá ao “laranja” ou “homem de palha” que titularizou contas bancárias de dinheiros oriundos dos delitos já mencionados, como a evasão de divisas, a falsificação de documentos e a lavagem de dinheiro.

Por sua vez, o parágrafo 10 do mesmo artigo dispõe que “estão isentos da multa de regularização de que trata o artigo 7º os valores disponíveis em contas no exterior no limite de até R$ 10 mil por pessoa, convertidos em dólares norte-americanos em 31 de dezembro de 2014”, ratificando o artigo 20 da Lei 10.522/2002, e desconsiderando a Portaria MF 75/2012, que prevê que não será instaurado o procedimento fiscal com valores até R$ 20 mil.

Além de todas as benesses, o artigo 6º, parágrafo 5º, prescreve que “a regularização dos bens e direitos e o pagamento dos tributos e da multa na forma do PL, excluirão a incidência de outros tributos federais diretamente incidentes esses bens e direitos em relação a fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2014 e da multa pela não entrega completa e tempestiva da declaração de capitais brasileiros no exterior, exceto os retidos pela pessoa física ou jurídica optante na condição de responsável e que não foram recolhidos e os incidentes sobre a importação, na hipótese de internalização de bens pela pessoa física ou jurídica optante”.

Importante, também, é a prescrição do artigo Artigo 10 ao dispor que “Será excluído do RERCT o contribuinte que: I – apresentar declaração de regularização contendo recursos, bens ou direitos de origem ilícita, sem prejuízo do disposto no art. 5º; II – deixar de apresentar, quando solicitado, documentos ou informações, ou apresentar documentos ou informações falsos, relativos à titularidade, e condição jurídica dos recursos, bens ou direitos declarados nos termos do art. 1º desta Lei”.

Por fim, complexo é o disposto no § 2º do mesmo artigo, onde se lê que “Na hipótese de exclusão do contribuinte do RERCT, a instauração ou continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte”.

Dessa forma, mesmo que o contribuinte seja excluído do RERCT não poderão ser utilizadas as evidências relacionadas à sua declaração, o que retarda a persecução penal dando azo à prescrição.

Portanto, em que pese referido PL ter como mote principal a sua instrumentalidade de medida do ajuste fiscal, referida “internalização” de recursos terá um alto custo para a Administração da Justiça, incluindo os órgãos de persecução penal, pois, como alhures explicitado, o delito de lavagem de dinheiro altera a roupagem da origem espúria de diversos crimes, como o tráfico de drogas, a corrupção, o contrabando e o terrorismo, o que prejudica a investigação do “caminho do dinheiro” e, consequentemente, do crime antecedente.

Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

Wanessa Gonçalves Ribeiro da Silva é advogada, especialista em Direito Constitucional e em Direitos Humanos.