Responsabilidade familiar: um dever constitucional
Muito se discute, atualmente, a respeito das novas configurações de modelos familiares. A prevalência do vínculo afetivo para caracterização do conceito de família tem norteado essas discussões e, inclusive, as decisões judiciais em lides familiares.
De outro lado, a cada dia, desponta a existência de um problema sério a ser enfrentado: a falta de afeto nas relações familiares e, em consequência, a irresponsabilidade no seio desta instituição.
A concepção de um filho no mundo contemporâneo nem sempre é refletida. As relações amorosas cada vez mais efêmeras tem como consequência, muitas vezes, o surgimento de pais e mães biológicos, mas não afetivos.
E mesmo no modelo de família propagado como tradicional, em que duas pessoas se unem e decidem ter filhos, muitas vezes, o que se verifica é que a vontade de ter filhos não necessariamente corresponde à vontade de serem verdadeiros pais e mães. A educação dos filhos é terceirizada, como se fosse dever da escola, da comunidade, de qualquer pessoa, exceto dos pais.
Nessa realidade, é crescente o número de crianças e adolescentes que são órfãos de pais vivos. Tal situação é verificada em diferentes realidades, independe de classe social, grau de instrução ou outras características subjetivas.
Nesse contexto, também é cada vez maior a quantidade de avós que assumem a responsabilidade por seus netos, como se pais e mães fossem, muitas vezes com sacrifício do próprio sustento e qualidade de vida – mas pelo mais puro amor.
Em outro ângulo, tem-se que há muitos filhos que não se sentem responsáveis por cuidar de seus pais e mães idosos. Simplesmente se ocupam de suas próprias vidas, muitas vezes repetindo o exemplo de abandono afetivo vivenciado na infância. Com o aumento da longevidade, o abandono de idosos tem se tornado um problema crítico, uma vez que o Estado também não possui aparato para substituir a família no dever de cuidado.
Frise-se que esse retrato é feito com base nos diversos casos que tem sido levados ao Poder Judiciário todos os dias – como se ao Estado coubesse substituir as famílias em seu dever fundamental de mútua assistência e de definição de seu destino.
Vale ressaltar que o princípio da paternidade responsável (incluída, por óbvio, a maternidade responsável) e o princípio da dignidade da pessoa humana são assegurados constitucionalmente, como base para o planejamento familiar (artigo 226, §7º). A observância destes princípios não é, pois, uma opção.
Do mesmo modo, o dever de cuidado entre pais e filhos também é de natureza constitucional, como se constata do artigo 229:
“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Como regra, são reivindicados os direitos previstos na Constituição Federal, o que se vê diariamente em conversas informais e em todos os meios de comunicação.
A transformação da realidade brasileira, porém, depende não só da reivindicação de direitos, mas também da observância dos deveres constitucionalmente previstos, a começar pelas relações mais básicas do ser humano: as familiares.
Enquanto não houver responsabilidade pelos seres concebidos e trazidos à luz – independentemente da discussão sobre modelos familiares – a violência, a intolerância e o egoísmo dominarão todas as demais relações sociais, minando as esperanças de uma sociedade livre, justa e solidária, cuja construção é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Luciana Vieira Dallaqua Vinci é promotora de Justiça e membro do MPD.