(01/03/17)

MP no Debate

É necessário ter um código penitenciário no estado de São Paulo
Por Paulo José de Palma e Fernanda Narezi Pimentel Rosa
A crise no sistema prisional, o elevado crescimento da população carcerária nos últimos anos e a perniciosa atuação das facções criminosas dentro e fora dos presídios evidenciam a premente necessidade de o estado de São Paulo legislar sobre Direito Penitenciário, de modo a melhor se disciplinar as ocorrências afetas ao sistema carcerário e se atender as peculiaridades e a grandeza do sistema prisional paulista.
Como se sabe, o estado conta com uma população carcerária de pouco mais de 233 mil presos, distribuída em 167 unidades prisionais, sendo 83 penitenciárias; 43 centros de detenção provisória; 15 centros de progressão penitenciária; 22 centros de ressocialização; 1 unidade de RDD (regime disciplinar diferenciado) e 3 hospitais psiquiátricos (segundo dados da Secretaria da Administração Penitenciária).
Ou seja, o estado de São Paulo custodia mais de um terço de todos os segregados no Brasil.
Para se estabelecer a real dimensão da grandiosidade do sistema paulista, lembre-se que, na última saída temporária (benefício previsto no artigo 122 da LEP), ganharam as ruas cerca de 30 mil presos, convindo anotar que, usualmente, os diretores das unidades prisionais encaminham listagens coletivas ao Poder Judiciário, relacionando os sentenciados que, “em tese”, preenchem os requisitos legais para tanto, não havendo análise minuciosa por parte do Ministério Público ou mesmo pelo Poder Judiciário da situação individual de cada sentenciado.
Além disso, a atuação das facções criminosas (uma delas nascida no sistema prisional paulista) demanda, muitas vezes, a inclusão de lideranças no regime disciplinar diferenciado.
De outra parte, temos 67 centrais de penas e medidas alternativas em funcionamento no estado de São Paulo (condenados que cumprem prestação de serviços à comunidade), com o total de 150.549 cadastrados desde o início do programa, implantado em 1997.
O Código Penitenciário Estadual tem por escopo a regulamentação do sistema penitenciário do estado, com suas peculiaridades, em estrita observância ao preconizado tanto na Constituição Federal quanto na Constituição estadual e Lei Federal 7.210/84 (Lei de Execução Penal), além de outros diplomas legais que contenham normas atinentes à execução penal.
A competência para legislar sobre a matéria é concorrente, como superiormente preconiza o artigo 24, inciso I, da Constituição Federal, autorizando o estado a regrar.
O procedimento relativo à execução da pena e da medida de segurança, no âmbito nacional remanesce disciplinado pela Resolução 113, de 20 de abril de 2010, do Conselho Nacional de Justiça. No estado de São Paulo, por sua vez, o regramento é efetivado pelas normas de serviço da Corregedoria-Geral de Justiça, por meio do Provimento 50/89 (Capítulo V, Seção VIII), tratando do rito formal nos itens 126 a 129.
Na ausência do Código Penitenciário Estadual, a Secretaria da Administração Penitenciária de há muito instituiu o denominado “Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do Estado de São Paulo”, traçando normas procedimentais que visam padronizar o trabalho desenvolvido nas unidades prisionais.
A Resolução SAP 144, de 29/6/2010, compilou, no Regimento Interno Padrão outrora vigente, alterações procedimentais que devem ser seguidas pelas unidades prisionais que integram a Secretaria da Administração Penitenciária, exceto os centros de ressocialização, as unidades médico-hospitalares e o centro de readaptação penitenciária, submetidos ao regimento interno específico, consoante dispõe o artigo 3º da resolução aludida.
Em virtude do elevado número de estabelecimentos prisionais no estado de São Paulo, referida resolução preconiza que a administração das unidades prisionais é dividida por regiões e exercida pelas coordenadorias regionais de unidades prisionais, bem como pela Coordenadoria de Saúde do Sistema Penitenciário.
O Regimento Interno Padrão (Resolução SAP 144), além de descrever os direitos, os deveres e as recompensas, tipifica as faltas disciplinares leves e médias, o que, para alguns, se mostra inadmissível, pois somente a legislação estadual poderia fazê-lo, nos termos do alhures citado artigo 24, inciso I, da Constituição Federal.
Nessa senda, oportuno mencionar que o rol das faltas graves, previsto no artigo 50 da Lei Federal 7.210/84, é eminentemente taxativo, cabendo à legislação estadual tão somente tipificar as faltas médias e leves.

Aqui abrimos parêntese para mencionar que a Assembleia Legislativa do Estado do Pernambuco, no dia 4 de abril de 2016, por meio da Lei 15.755, instituiu o Código Penitenciário do Estado do Pernambuco.
Contudo, no artigo 131, parágrafo 2º, para efeito da Lei Federal 12.258/10 (que previu a possibilidade de utilização de equipamento de vigilância indireta pelo condenado), considerou falta grave o desligamento de equipamento de monitoramento eletrônico que resulte comprovadamente dano ao patrimônio público; o que não nos parece viável, em virtude da ausência de previsão correspondente na legislação federal.
Aliás, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou acerca do tema: “A não observância do perímetro estabelecido para monitoramento de tornozeleira eletrônica configura mero descumprimento de condição obrigatória que autoriza a aplicação de sanção disciplinar, mas não configura, mesmo em tese, a prática de falta grave” (Informativo 0595; publicado em 15 de fevereiro de 2017; 6ª Turma, Processo REsp 1.519.802-SP, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, por unanimidade, julgado em 10/11/2016, DJe 24/11/2016).
Concluído o aparte, o Regimento Interno Padrão disciplina ainda as medidas cautelares; cuida do procedimento e sanção disciplinares; da reabilitação; das visitas; das revistas de pessoas, objetos, bens, valores, veículos e áreas habitacionais; dos objetos, bens e valores pessoais dos presos e do contato externo.
Importante frisar que as normas contidas no Regimento Interno Padrão somente são aplicáveis aos que se encontram enclausurados em unidades prisionais, não dispondo (e nem poderia) sobre a fiscalização dos executados que cumprem medidas alternativas, aos que estão no regime aberto, sob livramento condicional ou suspensão condicional da execução da pena.
Além do Regimento Interno Padrão, outras resoluções da Secretaria da Administração Penitenciária tratam de questões afetas ao sistema prisional, como, por exemplo, as resoluções SAP 69/2004 e SAP 155/2009, que instituíram, respectivamente, o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) e a Célula de Intervenção Rápida (CIR).
Ora, o elevado número de presos, de pessoas submetidas ao regime aberto, ao livramento condicional, a suspensão condicional da execução da pena e sob sanções alternativas, além dos inúmeros atos administrativos que disciplinam as questões penitenciárias, evidenciam a necessidade da instituição do Código Penitenciário do Estado de São Paulo, cuja elaboração exige não apenas o comprometimento da Assembleia Legislativa como a efetiva participação da sociedade civil, do Ministério Público, das secretarias da Administração Penitenciária e Segurança Pública, do Conselho Penitenciário, do Conselho da Comunidade, da Ordem dos Advogados do Brasil e Defensoria Pública estadual — dentre outras instituições — à luz da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da legislação infraconstitucional e, ainda, das convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
É que não se pode olvidar que vivemos num Estado Democrático de Direito, em cujo bojo consta[1] um plus normativo, um conteúdo utópico de transformação da realidade, que o difere do Estado Liberal (onde a lei possui um conteúdo geral e abstrato, destinada a limitar a ação estatal) e também do Estado Social (onde a lei, além da restrição à atividade estatal, assumia um papel de implementação das prestações exigidas pelo Estado).
O jogo democrático e os corolários da participação de todos no processo de aprimoramento das instituições e do país devem servir de norte para a construção de regramentos que se submetam ao devido e imprescindível processo legislativo, de modo que o ideal do legislador, depurado pelas reflexões e debates entre todos os atores envolvidos na questão, enfim possa se transformar em lei e propiciar a efetivação da almejada justiça social.
Nesse sentido, debalde o respeito que se presta a iniciativa das secretárias estaduais que cuidam dos encarcerados e que optaram por lançar mão de regulamentos, não se pode negar que existe patente carência da presença de uma legislação estadual sedimentada e atenta aos princípios constitucionais, de sorte a não apenas suprir a lacuna existente como, outrossim e sobretudo, fazer valer aos encarcerados e aos que atuam no sistema carcerário as garantias democraticamente erigidas como relevantes pelo Poder Constituinte.
De fato, incluindo-se a[2] humanização da sanção penal e a garantia dos direitos fundamentais como objetivos a serem perseguidos por todos aqueles que atuam na seara das execuções, tem-se que não se compreende como, ainda hoje e com a maturidade que atingimos, ainda se possa cogitar da existência de regramento outro que não o da lei para disciplinar as relevantes e prementes questões atinentes ao sistema prisional pátrio, até porque, como se sabe, o princípio da dignidade da pessoa humana, esposado pelo artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal, decorre do Estado Democrático de Direito, se constituindo numa[3] “norma de hierarquia superior, destinada a orientar todo o sistema no que diz respeito a criação legislativa, bem como para aferir a validade das normas que lhe são inferiores”.
Cuidando-se, como se cuida, do governo do povo, pelo povo e para o povo[4], força convir que o novo momento constitucional está a exigir a formulação de regramento específico e consoante a Constituição para disciplinar a matéria citada, mormente porque, contemporaneamente, já não se pode admitir resposta penal que não seja a proposta pelo “modelo reparador”, assim compreendido aquele que observa o delito sob novo ângulo, laborando não apenas com a singela recuperação do criminoso como, também, visando prepará-lo para[5] “levar uma vida com responsabilidade social e sem o cometimento de novos delitos (reincidência)”.
E, examinada a questão com imparcialidade, empresta-se razão a conclusão anotando que “refeletindo-se de forma crítica a respeito do estado de coisas inconstitucional, pode-se chegar a conclusão de que o descaso representa justamente a ausência de interesse politico na questão”, mesmo porque “impera uma visão distorcida a respeito do tema, tratando-se de pauta não positiva sob o ângulo político”[6].
Não se esqueça que o princípio da legalidade, abraçado pelo artigo 5°, inciso II, da Constituição Federal, reza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”, tanto que doutrinariamente já se assentou que “é o mandamento que celebra a legalidade; reprova o arbítrio”[7].
Se o referido princípio é “um dos substratos inexcedíveis do estado democrático de direito consagrados na Constituição de 1988”, força convir que existem atos da administração pública que “impõem restrição à liberdade das pessoas com suporte em lei exclusivamente no sentido material, propiciando o aparecimento de inúmeros atos de caráter normativo, como é o caso das resoluções, portarias, instruções e até editais de concursos públicos, desobedientes ao comando da legalidade”. “Somente a lei em sentido concomitantemente material e formal tem aptidão para conformar conduta individual, como têm reiteradamente decidido os Tribunais brasileiros”[8].
Não à toa, os estudiosos anotam que a “gênese democrática da lei depende de três fatores fundamentais: a fonte da qual promana a norma, já que esta deve provir de uma instância de representação plural da sociedade, o Parlamento; o procedimento adotado para a sua elaboração, de modo a assegurar condições simétricas de participação a todas as correntes político-ideológicas com representação no Parlamento, daí a exigência do devido processo legislativo; o rigor metodológico adotado na sua elaboração”. Mais. A “legitimação democrática se funda não só no voto, quando então sobreleva a importância da dimensão representativa, mas também na observância dos preceitos jurídicos-constitucionais, em especial os de índole procedimental, sob pena de se instalar a ditadura das maiorias”, registrando-se a necessidade de se perseguir certo “rigor na construção do conteúdo normativo em busca da solução que melhor atenda ao interesse coletivo”[9].
O que se pede, pois, é o advento da lei, posto que nela acreditamos, a ela nos submetemos e a sua efetiva incidência fiscalizamos. Dura lex, sed lex.
[1] Jatahy, Carlos Roberto. 20 Anos de Constituição: O Novo Ministério Público e suas Perspectivas no Estado Democrático de Direito – Temas Atuais do Ministério Público – Jus PODIVM 2013 – p. 31.

[2] Proposta de Alteração da Lei de Execução Penal pela Comissão de Jusristas Instituida pela Presidência do Senado Federal – 2013 – p. 03/v.

[3] Citado 01 – Greco, Rogério. Principiologia Penal e Garantia Constitucional a Intimidade, p. 747.

4] Recurso Extraordinário 641.320 – Audiência Pública – Regime Prisional Semiaberto – MPSP – Paulo José De Palma – p. 134.

[5] Mayrink da Costa, Álvaro – GZ Editora – 2016 – p. 04/verso.

[6] Carvalho Neto, Ruy Reis – A Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional Brasileiro – 2016 – p. 32.

[7] Jorge e Silva Neto, Manoel – O Constitucionalismo Brasileiro Tardio – ESMPU – 2016 – p. 57.

[8] Idem – p. 58.

[9] Bernardes Júnior, José Alcione – Processo Legislativo, Legística e Democracia – p; 02/03
Paulo José de Palma é promotor de Justiça, assessor do Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.

Fernanda Narezi Pimentel Rosa é promotora de Justiça, assessora Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.
Imagem: Pixabay

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