12/01/2017
Estadão – Blog do Fausto Macedo
O que nos mostra a chacina de Campinas?
Fabíola Sucasas*
12 Janeiro 2017
Na noite de réveillon, o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo matou a ex-mulher, o filho e outras dez pessoas. Ele suicidou-se em seguida. Deixou ainda uma carta dirigida a amigos e à namorada, não causando dúvidas de que foi feminicídio.

O recado de ódio às mulheres foi muito claro. Não se contentou, Sidnei, em matar a ex-mulher. Das 12 vítimas, uma era seu filho e 9 eram mulheres. Planejou a ação e fez questão de fazê-lo em momento de comemoração familiar. Deixou ainda sua mensagem, desvelando clara misoginia e completo e absoluto falso conhecimento da Lei Maria da Penha.

Será que a Lei Maria da Penha é bem compreendida?

A pesquisa “Percepções dos Homens sobre a Violência Doméstica contra a Mulher” realizada em 2013 pelo Instituto Avon e Data Popular apurou que 92% é favorável à Lei Maria da Penha, mas ainda concordam com estereótipos que colocam a mulher em espaço de desigualdade. Para os homens questionados, 89% consideram inaceitável que a mulher não mantenha a casa em ordem, 69% não toleram que a mulher saia de casa com amigos sem o marido e 79% que falar sobre seus problemas com os outros é coisa de mulher e não de homem.

Também mostra a pesquisa que a opinião de 81% dos homens entrevistados é a de que a aplicação da lei deve se voltar tanto para homens quanto para mulheres e, para 37%, que, devido à lei, as mulheres desrespeitam mais os homens.

Em um dos trechos da carta o autor dos crimes escreveu: “Filho, não sou machista e não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo de coração, tanto é que me apaixonei por uma mulher maravilhosa, a Kátia) tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha!”.
Não se compreende que a Lei Maria da Penha, intitulada como “Lei Vadia da Penha” pelo assassino Sidnei, foi criada para reduzir a desigualdade de gênero e a violência contra a mulher.

Na exposição de motivos que justificaram a criação da lei, apontaram-se as dimensões públicas da visibilidade da violência doméstica contra a mulher. Na época, citou-se a pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2001, de que “pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez”; e que “cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres são espancadas por ano no país”.

Hoje os números são muito mais fieis porque a lei possibilitou a quebra do silêncio de milhares de mulheres, a par da subnotificação ainda ser um dos grandes obstáculos para o enfrentamento da violência contra a mulher.
O Brasil está no quinto lugar no ranking de homicídios contra mulheres e as negras são as mais vitimizadas.

A agência Patrícia Galvão nos fornece mais dados: a Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014), aponta que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia; o mesmo relatório aponta que 89% das vítimas são do sexo feminino e que 70% dos casos são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima; em “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado” (FPA/Sesc, 2010) estima-se que, no Brasil, uma mulher é espancada a cada 26 segundos e é o parceiro o responsável por mais de 80% dos casos.

A lei mudou o paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher, que foi concebida como uma violação a direitos humanos. Ela criou mecanismos para coibir e prevenir a violência contra as mulheres, além de assistir e proteger a mulher em situação de violência doméstica e familiar. É uma legislação que propõe uma série de medidas para justamente diminuir a desigualdade que existe em razão do gênero.

Os crimes de gênero evidenciam uma sociedade brasileira preconceituosa nos números crescentes da violência em determinados grupos, na forma como o Estado e a sociedade os tolera, os pune; na forma como o Estado e a sociedade assiste e protege suas vítimas.

Os fatores que levam muitas mulheres a integrarem estatísticas de violência na atualidade dizem respeito aos que remetem às relações desiguais de poder entre homens e mulheres.

A intolerância foi constatada pela Pesquisa “Tolerância Social à violência contra as Mulheres”, publicada pelo IPEA em 2014, que apontou que 58% dos entrevistados “concordam, total ou parcialmente, que ‘se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”.

Outros fatores como a invisibilidade destas relações desiguais, a sua incorporação como padrões comportamentais a serem seguidos e a sua naturalização também afetam todo um sistema punitivo-protetivo, acarretando impunidade e permissibilidade à violência contra a mulher.

O bárbaro crime de Campinas não deve chocar apenas pelo número de pessoas atingidas ou porque uma delas era uma criança, mas pelas vertentes que dele ressoaram.

Uma delas é justamente essa, a falsa compreensão das relações desiguais entre homens e mulheres em razão do gênero e o que efetivamente prevê a legislação para o enfrentamento dessa realidade.

Outros fatores estão muito evidentes a esse respeito nos espectros da violência sistemática contra a mulher.
O suicídio entre homens pode estar relacionado ao exercício de suas masculinidades, uma saída extrema pelo “fracasso” do que eles imaginam que lhes era esperado publicamente.

A tese da antropóloga Ondina Fachel Leal, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora do estudo “Suicídio, Honra e Masculinidade na Cultura Gaúcha”, propõe uma reflexão sobre a relação do suicídio como uma forma de conservar a honra e a masculinidade do homem suicida.

A carta ainda foi feita na busca de justificativas e de aliados. Eis um dos trechos: “Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai! … A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias…”

O assassino quis lançar uma sentença arbitrária e cruel ao feminismo. Urge lembrar que feminismo é um movimento político, filosófico e social que defende a igualdade de direitos entre mulheres e homens.

Discutir a respeito de masculinidades, feminilidades e estereótipos de gênero, faz parte do universo de enfrentamento das desigualdades entre homens e mulheres em razão do gênero proposto pela Lei Maria da Penha.
Uma criança, filho do casal, esteve mais uma vez no cenário da barbárie. É comum que a violência doméstica não apresente testemunhas presenciais; muitas vezes, porém, são os filhos os seus espectadores.

Segundo o Balanço do Ligue 180 – 2014, 64,5% da violência ocorre na presença dos filhos; ainda que 17,73% também sofrem agressões.

Pode-se dizer que estas crianças e adolescentes também são vítimas da violência doméstica, diretas ou reflexas. Os efeitos a este grupo podem ser mais gravosos do que se imagina: são pessoas que se encontram em desenvolvimento, é comum que sofram a chamada “revitimização” porque instados a relatar as situações de violência, são muitas vezes as “vítimas permanentes” porque continuam convivendo com o agressor ainda que a relação entre ele e vítima termine e o que inclusive pode nortear a chamada “alienação parental”. Além disso, encontram-se em uma posição que facilita a repetição daquele padrão de relacionamento, tornando a violência algo natural.

Não podemos ignorar o fato de que, no caso da chacina, isso é notório, como a última etapa do ciclo da violência dirigida a este grupo.

As outras pessoas vitimadas, que compartilhavam momentos de alegria com a ex-mulher do assassino Sidnei, a acolhiam. E isso era impensável para ele. Ela não podia ser feliz. Nem ela, nem seus afins.

Esta dinâmica se dá em patamares menores, de testemunhas ameaçadas tanto quanto, de profissionais alvo da violência porque socorreram a mulher que pediu ajuda.

Não se compreende que a Lei Maria da Penha é fruto de recomendação ao Estado Brasileiro para encarregar-se de vez com compromissos assumidos internacionalmente em nome da erradicação da violência contra a mulher.

E muito além do abalo natural desta atrocidade de Campinas, é necessário enxergar os gargalos que permanecem mais do que vivos e que permeiam a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sem punição ao suicida, evidentemente, pergunto: qual será o ultimato aos gargalos?

*Fabíola Sucasas, diretora do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD) e promotora de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do MP-SP
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