MP NO DEBATE

Ética e eficiência: por que é tão necessário reformar os tribunais de Contas?
Por Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira
Os tribunais de Contas no Brasil remontam ao século XIX, instituídos, no ano 1890, para verificar a legalidade das contas públicas em um ambiente no qual o país havia acabado de se tornar uma República.
Ao longo dos anos, a competência dessas cortes se expandiu, sendo-lhes atribuídos deveres mais complexos, como os de fiscalização. No entanto, ficou mantido o critério de indicação política dos membros desses tribunais, semelhante ao de um século atrás, com a diferença de que, se antes era o chefe do Executivo que fazia a escolha, a partir da Constituição Federal de 1988 inaugurou-se um sistema de misto, em que aquele passou a escolher um membro, e o Legislativo, os outros quatro, restando às carreiras técnicas apenas uma vaga para cada uma. Essa nova composição, em que, dos sete membros, cinco são indicados por critérios políticos, pode ser explicada em razão da vitória do Parlamento (que redigiu a nova Constituição) sobre o poder central e sobre a ditadura militar.
Fácil verificar que, nesse mais de um século e quase três décadas de Constituição, o que se viu é que esse sistema continuou sofrendo do mesmo pecado original que maculou a sua concepção, já que manteve a indicação política majoritária e sem qualquer controle. Assim ocorrendo, gerou-se uma disfunção, pois, repita-se, o rol de competências atual exige conhecimentos técnicos, cada vez mais sofisticados, enquanto que o modo de indicação, ao contrário, continuou rudimentar.
Engana-se, contudo, quem imagina que o problema seja “apenas” esse. Isso porque os recentes episódios de corrupção, que assistimos alarmados, demonstraram que o atual modelo dos tribunais de Contas (que custa mais de R$ 10 bilhões à nação ao ano) falhou no seu dever básico de fiscalizar os atos e contratos sujeitos a seu exame, não sendo capaz de impedir ou reprimir práticas corruptas e antieconômicas. Para piorar, foi trazido à superfície um esquema igualmente ilícito, revelado pela operação quinto de ouro, no Rio de Janeiro, quando cinco conselheiros foram presos por participarem de supostos atos de corrupção, que tinham o dever de combater.
Diante desses fatos, em abril foi assinada, pelos principais juristas brasileiros, carta aberta pela reforma dos tribunais de Contas, defendendo mudanças[1].
No mês seguinte, foi lançado um movimento nacional (#MudaTC) que também quer alterações na maneira como são fiscalizadas as contas públicas.
Em comum entre ambas as iniciativas está o reconhecimento acerca da importância do sistema de controle, desde que eliminadas as suas disfunções, para que possa, realmente, garantir que o orçamento e as políticas públicas sejam executados, em benefício da população.
No Congresso Nacional, tramita ainda a PEC 329/2013, que possui três eixos. O primeiro quer dar um basta às indicações políticas para os tribunais de Contas, por entender que as competências dessas cortes, no século XXI, requerem julgadores técnicos para essa função, enquanto políticos devem concentrar seus esforços no Parlamento, para a melhoria das condições de vida de toda a sociedade brasileira.
O segundo eixo defende que conselheiros dos TCs também sejam fiscalizados por um órgão externo, o Conselho Nacional de Justiça. Não faz sentido que eles, que se subordinam à Lei Orgânica de Magistratura Nacional e aos mesmos direitos e deveres dos magistrados do Poder Judiciário, fiquem de fora dessa fiscalização.
Por fim, o terceiro quer eliminar outra grave disfunção. É que na época em que foram criados os tribunais de Contas não havia um Ministério Público, como o que hoje conhecemos, independente, o que só existiu a partir da Constituição Federal de 1988. Seria de se esperar, assim, que o Ministério Púbico que atua perante os tribunais de Contas, com procuradores concursados para a carreira e com a mesma missão de fiscalizar o cumprimento da lei, seria regido pelos mesmos direitos, comuns a todo e qualquer integrante do Ministério Público brasileiro, consoante o que a própria Constituição Federal de 1988 previu no artigo 130. Mas não foi isso o que ocorreu. Passou-se a entender que apenas os procuradores do Ministério Público de Contas não gozariam de plena autonomia, apesar de estarem contidos no capítulo do Ministério Público.
Sem autonomia plena, o MP de Contas não tem condições de se auto-organizar, ficando na dependência direta dos tribunais de Contas, que detêm o orçamento, para conseguir instalações, equipamentos e até mesmo para fazer concursos para prover seus cargos. Em muitos casos, além de não haver condizentes condições de trabalho, não há procuradores na quantidade devida.
No Brasil do século XXI, há, por esses fatos, apenas 167 procuradores do Ministério Público de Contas para fiscalizar, por exemplo, práticas administrativas e financeiras dos mais de 5 mil municípios, dos 26 estados da Federação, da União e do DF. Há estados que funcionam com apenas dois procuradores de Contas[2]. Ora, quanto menos procuradores, menor é a fiscalização.
Chegou a hora de a nação brasileira perguntar a si e aos políticos que fazem as leis em nosso país se ainda quer ver mantido esse sistema ou se quer outro, mais ético e apropriado à realidade do século XXI, marcado pela conectividade e transparência e cujos valores se legitimam, não pelo privilégio, mas pela eficiência.
[1] São 40 professores do quilate de Celso Antônio Bandeira de Mello, Heleno Torres, Ingo Sarlet, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por exemplo. Disponível em: http://ibda.com.br/noticia/reforma-dos-tribunais-de-contas-carta-aberta.

[2] Esses relatos e o mapeamento da carreira podem ser encontrados no relatório nacional Conhecendo o Ministério Público de Contas, na página oficial do Conselho Nacional do Procuradores-Gerais de Contas. Disponível em: http://www.cnpgc.org.br/?p=591.
Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira é procuradora do Ministério Público de Contas do Distrito Federal, presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas e associada do Ministério Público Democrático (MPD).