Por Ricardo Prado Pires de Campos
Há muitos anos, num importante jornal, li dois artigos opostos onde se debatia a questão das drogas: um defendendo a proibição e outro sustentando a liberação. Um deles, escrito por um psiquiatra, argumentava que as drogas não eram um problema de polícia, mas de saúde pública, e que deveria ser conduzido pelos médicos. Dizia que a intervenção da polícia era ruim porque inibia as pessoas de procurarem tratamento, com medo de acabarem presas. Admito que os argumentos me impressionaram, tanto que jamais esqueci desse texto. Atualmente, diversas localidades experimentam essa via.
No entanto, há um receio de que a liberação possa agravar significativamente o problema, pois, sem proibição, o consumo pode explodir.Estima-se que o consumo de maconha, cocaína e crack venham crescendo exponencialmente; mas comparados com as drogas lícitas, cigarro e álcool,os índices são muito menores. Se a liberação das drogas seguir o padrão destas últimas,teremos uma explosão do consumo. Imaginem cocaína e crack vendidos livremente nos bares, clubes e casas noturnas. Servidos nas festas. Alguém conseguirá conter o consumo? Não. Criaremos uma sociedade com milhões de pessoas improdutivas e doentes; e quem as sustentarão?
Como Promotor de Justiça sempre busquei trilhar o caminho da legalidade; mas trabalhando na repressão ao tráfico de drogas, pude constatar inúmeras situações, onde o cumprimento estrito da lei leva a resultados contestáveis. O que mais se discute, na atualidade, é o contingente infindável de presidiários. A maioria é constituída por jovens recém-chegados à maioridade, e que acabam detidos como traficantes. Duas décadas atrás, traziam pouco mais de uma dezena de trouxinhas;atualmente, carregam centenas de porções. O crack revelou o efeito devastador sobre a saúde dos usuários. Ainda assim, as prisões desses jovens não conseguiram frear o consumo. Na maioria, esses adolescentes vêm das classes sociais desfavorecidas, mas o problema não exclui nenhuma classe, seja na busca do alto ganho financeiro, seja no consumo das drogas proibidas.
A opção do Constituinte, em 1988, foi de trilhar o caminho da repressão total, tanto que equiparou o tráfico de drogas aos crimes hediondos; proibiu a fiança, graça e anistia,e ameaçou punir até quem se omitisse em relação ao tema (art.5º, XLIII); além de determinar a expropriação (sem indenização) das propriedades onde houver “culturas ilegais de plantas psicotrópicas” (art.243).
No entanto, décadas depois, a política do STF, guardião da Constituição, segue em outra direção. O número de encarcerados passou a pesar mais do que o texto constitucional. Várias decisões do Supremo Tribunal Federal concederam benefícios aos traficantes de drogas: a primeira, relatada pelo ministro Ayres Brito (HC 97.256-RS), permitiu a substituição da pena por penas alternativas não privativas de liberdade; a segunda, do ministro Gilmar Mendes (HC 104.339-SP), admitiu a liberdade provisória; a terceira, de Dias Toffoli (HC 111.840-ES), criou a possibilidade de regime aberto; e, finalmente, a quarta, da Ministra Carmen Lúcia (HC 118.533-MS), veio a excluir o tráfico privilegiado do rol dos crimes equiparados a hediondos. Trata-se de uma guinada significativa na Política de Drogas do país. E isso divide opiniões.
A polêmica é insuperável; de um lado, operadores do Direito e uma parte da população que são absolutamente a favor da punição severa aos traficantes. Estes são vistos como inimigos da sociedade e devem ser tratados com muito rigor. De outro, os liberais, que enxergam nessas pessoas apenas vítimas de um sistema social que favorece a exclusão dos mais pobres, dos marginalizados; e drogados e traficantes fazem parte dessa realidade.
A própria legislação reproduz essa dicotomia e essa dubiedade. Pune de um lado, beneficia de outro. A Lei 6368 de 1976 tinha uma pena mínima de três anos de reclusão para traficantes (art.12); a Lei atual nº 11.343 de 2006,subiu para um mínimo de cinco anos de privação de liberdade (art. 33, caput), mas criou o tráfico privilegiado (§4º), cuja pena sofre redução de até dois terços, ou seja, a pena mínima, em verdade, caiu para um ano e oito meses. Somente para o reincidente ela subiu: cinco anos e dez meses, pena mínima sem o privilégio,com aumento de um sexto pela reincidência.
A liberação das drogas deve ser o sonho para seus produtores. Alguns países geram fortunas com a produção e venda desenfreada de estupefacientes.
Nos países consumidores, a política é inversa. Os Estados Unidos, primeiro consumidor mundial, adotou uma política de guerra às drogas; e a impôs a boa parte do mundo. Essa política de guerra constitui o sonho dos produtores de armas.
Assim, uma política liberal beneficia produtores e traficantes de drogas. Uma política repressiva beneficia produtores e traficantes de armas, e, em consequência, transforma os traficantes de drogas em grandes consumidores de armamentos. O Brasil está no meio desse conflito, espremido por ambos os interesses; é uma rota para traficantes, mas com um mercado consumidor que já é considerado um dos mais importantes do mundo. Em suma, há lucros e perdas. Lucros na comercialização de drogas e armas; e perdas de vidas e da saúde dos usuários.
Após muitos debates sobre esse tema, inclusive em Congresso realizado pelo MPD em 2016, nos parece possível visualizar uma postura intermediária que atenda os interesses do país, e as decisões do STF abrem caminho para isso.
Afastada a possibilidade de liberação do tráfico de drogas, devido a inevitável explosão do consumo, resta agir com inteligência para tentar desestimular esta que é uma das profissões mais lucrativas na atualidade.
Para isso, é preciso passar a fazer distinções entre os diversos tipos de traficantes. Não se trata de distinguir apenas grandes de pequenos comerciantes; mas também, traficantes violentos de não violentos; meros mercenários da saúde alheia daqueles que são igualmente vítimas e causadores do problema.
O tráfico privilegiado, na visão atual do STF,permite a criação de um sistema de rápido giro penitenciário, evitando o encarceramento prolongado de um contingente imenso da população. Serve de aviso àquele que achou que passaria ileso pelos atos ilícitos praticados; mas não o retém por muito tempo, salvo se persistir na prática ilícita.
Todavia, é sempre preciso distinguir os casos mais graves: a reincidência gera uma pena bem maior, e serve de desestímulo àquele que resolver ser profissional do setor; mas não é somente a reincidência que precisa ser eficazmente desestimulada.
A lei prevê o afastamento do privilégio nos casos de participação em organização criminosa,e nadedicação aessa atividade.
Precisam ser obstados de obter o benefício (privilégio), em primeiro lugar, os traficantes que trabalham armados. Armas e drogas criam uma composição de altíssima violência; essa forma de atuação tem de ser combatida com rigor, pois, é a pior forma do tráfico:gera homicídios.
O segundo grupo é o dos grandes fornecedores: os traficantes de muitos e muitos quilos de drogas,cuja conduta tipifica participação em organização criminosa. Se não é possível manter todos os traficantes na prisão por muito tempo, é possível segurar os grandes. Não pode haver privilégio para tráfico de 700 quilos como ocorreu em caso do MS, depois usado pelo STF (HC 118.533), isso é inconcebível.
Também, é preciso combateras finanças das organizações criminosas, através de ações que visem o bloqueio e expropriação de seu lucro e patrimônio, os quais deveriam ser destinados, na maior parte,ao financiamento dasaúde pública.
Em suma, se punirmos com rigor os traficantes armados, os grandes traficantes, as organizações criminosas e os reincidentes; talvez consigamos um melhor controle do problema; do que nos perdermos num esforço imenso sobre uma massa de usuários-vendedores e desempregados, que são mais vítimas do tráfico do que qualquer outro; são as pessoas que perdem suas vidas nas drogas e nas cadeias, sem que tenham recebido grande vantagem por isso. Para estes uma curta permanência no cárcere (até o recebimento da denúncia ou citação), seguido de tratamento para o abuso das drogas, sob pena de retorno à prisão, pode gerar menor custo social e maior eficiência.
A ênfase no tratamento deve ser uma tônica constante; além de uma repressão mais seletiva (jurisprudência do STF), é preciso investir forte no tratamento dos usuários de drogas(arts. 45 e 46 da Lei 11.343, de 2006). Milhares de traficantes são usuários. Número enorme de furtadores estão envolvidos na criminalidade em razão das drogas. Até assaltos e homicídios, por vezes, são consequência delas. A exigência de que procurem tratamento médico ou ajuda em grupos como Narcóticos Anônimos e Amor Exigente, dentre outros, é essencial. Todos os benefícios da legislação: liberdade provisória, livramento condicional, penas alternativas e outros; deveriam ser condicionados ao tratamento, sempre que o réu for usuário.
O momento que o país atravessa comporta uma mudança na política de combate às drogas, não a simples liberação dos entorpecentes, o que pode ter conseqüências catastróficas; mas passando a focar mais no tratamento, e reduzindo o tempo de permanência na prisão dos traficantes, de forma seletiva, sem deixar de reprimir as condutas ilegais, mas usando outras formas de combate e não apenas a privação de liberdade. Número menor de presidiários representa uma redução no custo para a sociedade, e menor poder para as organizações que controlam os presídios. Mas não se faz isso de forma irresponsável, com a mera liberação das drogas. Podemos fazer uma grande mudança, usando mais a medicina e menos os presídios, mas de forma combinada, com repressão mais curta, seletiva e mais eficiente.
Em suma, é preciso tratar o problema em todos os aspectos, com métodos combinados — e não focar apenas na repressão. A criminalização ajuda na contenção do problema, mas, sozinha, não consegue os resultados necessários.
Ricardo Prado Pires de Campos é procurador de Justiça no Ministério Público de São Paulo, mestre em Direito e 2º vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD.
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Imagem: Pixabay