Clipping Correio da Cidadania

Caso do goleiro Bruno faz emergir várias contradições da sociedade brasileira
A ocultação o cadáver de Eliza Samudio, perpetrada pelo goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, em pleno auge de sua estelar carreira futebolística, é um dos crimes mais marcantes da história recente do Brasil, tanto pela notoriedade do responsável como pelo extremo requinte de crueldade. Condenado em primeira instância e contratado pelo campeão brasileiro da terceira divisão após seis anos de cárcere, sua figura causa indignação na opinião pública e acalorados debates. Falamos do caso com o promotor de Justiça Ricardo Prado Campos.
“A excessiva demora no julgamento do recurso é lamentável, mas isso tem a ver com o volume insuportável de processos e o exagero de recursos no sistema brasileiro. Um único caso é reapreciado diversas vezes, gera uma sobrecarga nos tribunais e impede que a Justiça seja rápida. Por outro lado, já existe um julgamento com resultado condenatório e uma pena bastante significativa a cumprir. Essa pena não foi alterada e o prazo mínimo de progressão – dois quintos para crime hediondo – não chegou a ser cumprido”, ponderou.
Na conversa, o membro do Ministério Público tratou de baixar o tom das apaixonadas discussões que se registram em todos os ambientes e analisa questões mais gerais da sociedade brasileira. Inclusive ressalta que, apesar de tantas críticas, alguns aspectos do sistema de justiça têm melhorado nos últimos tempos.
“Há muitas pessoas condenadas que cumprem suas penas e retomam sua vida num caminho melhor. Aprendem a lição de que certas condutas não compensam. Mas há pessoas que são refratárias. Há um grupo menor de indivíduos que não muda. Não quer mudar. Precisamos separar esses grupos e dar soluções distintas”, afirmou.
A entrevista completa com Ricardo Prado Pires Campos pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você enxergou a soltura do goleiro Bruno, após seis anos de prisão pelo desaparecimento de Eliza Samudio, liberado para responder a continuidade do processo em liberdade?
Ricardo Prado Campos: Com naturalidade. Depois de muitos anos de trabalho nessa área, estou acostumado a conviver com esse tipo de situação, o que não quer dizer que concorde com a decisão. Aliás, ressalto que essa decisão, que determinou a soltura, é provisória, de um único ministro. O caso ainda será julgado pelos demais membros da turma do STF, o que pode mudar o resultado do julgamento.
Correio da Cidadania: O que a decisão, a seu ver, diz da estrutura de justiça brasileira que o condenou a 23 anos de prisão por homicídio triplamente qualificado em júri popular, em primeira instância? Não é absurdo que o caso só tenha passado da primeira instância até hoje?
Ricardo Prado Campos: A excessiva demora no julgamento do recurso é lamentável, mas isso tem a ver com o volume insuportável de processos e o exagero de recursos no sistema brasileiro. Um único caso é reapreciado diversas vezes, gera uma sobrecarga nos tribunais e impede que a Justiça seja rápida.
Por outro lado, já existe um julgamento com resultado condenatório e uma pena bastante significativa a cumprir. Essa pena não foi alterada e o prazo mínimo de progressão – dois quintos para crime hediondo – não chegou a ser cumprido. Ressalto, ainda, que os julgamentos do Tribunal do Júri somente podem ser reformados em hipóteses muito específicas, muito raramente.
Correio da Cidadania: E sobre o Brasil e sua violência cotidiana, de diversos matizes, o que o caso representa de modo mais amplo?
Ricardo Prado Campos: Representa que a construção da Justiça é um trabalho difícil, árduo. As pessoas costumam pensar que o mundo deve ser naturalmente justo. Infelizmente, não é assim. Vivemos muitos conflitos ao longo da vida: em casa, no trabalho, na escola, no trânsito, nas relações comerciais, afetivas e por aí vai. Se não fizermos um esforço hercúleo para resolvermos tudo de forma educada e satisfatória, podemos nos envolver em situações de violência, como autores ou como vítimas.
O uso da violência é inato nas pessoas; o controle sobre ela é aprendido. O Brasil anda num mau momento nesse quesito: a democratização sem educação, a urbanização desordenada, que gerou muita exclusão social, mais a desestruturação das famílias (passam por intensa e rápida modificação), aliadas a um desejo de consumo crescente em razão das novidades da indústria e da tecnologia, resultaram numa sociedade de alta beligerância. Quem olhar nossas estatísticas nessa área imaginará que estamos em guerra.
Mas há alguma luz no túnel: algumas localidades têm conseguido reduzir a violência; a Justiça começa a alcançar até as pessoas que outrora eram intocáveis; as novas mídias geram muita informação, e isso trará uma melhoria da educação e das pessoas. As ciências avançam. Enfim, há muitos problemas, mas há soluções em curso. Temos de trabalhar e dar a nossa contribuição. O mundo continua progredindo, apesar dos percalços.
Correio da Cidadania: Há muita polêmica no debate público, recheado de opiniões emocionais e morais, de um lado, e aquelas que defendem a ressocialização e reintegração à sociedade, de outro. O que você pensa disso, qual debate conceitual deveríamos levar adiante?
Ricardo Prado Campos: Há muitas pessoas condenadas que cumprem suas penas e retomam sua vida num caminho melhor. Aprendem a lição de que certas condutas não compensam. Mas há pessoas que são refratárias. Há um grupo menor de indivíduos que não muda. Não quer mudar. Precisamos separar esses grupos e dar soluções distintas. Alguns presidiários precisam ficar em estabelecimentos de segurança máxima, indiscutivelmente, por muito tempo.
A maioria dos condenados é passível de recuperação, mas uma parte deles precisa de ajuda, outros conseguirão sozinhos. Em suma, são muitos problemas diferentes que necessitam de tratamento diverso. Cada espécie de delinquência (assaltantes, homicidas, estupradores, agressores de mulheres etc.) precisa de um tipo próprio e adequado de tratamento. Generalizações superficiais não resolvem problemas.
Correio da Cidadania: Você enxerga brecha para a interpretação similar àquela de crimes cometidos por regimes totalitários, por conta de o processo não ter esgotado todas as suas instâncias, o corpo não ter sido jamais localizado e o consequente fato de a família da vítima até hoje não ter exercido seu direito ao luto e despedida? Há incidência do artigo 211 do Código Penal Brasileiro, que versa sobre a “permanência do crime” ou algum outro?
Ricardo Prado Campos: Neste caso, houve condenação pelo homicídio qualificado e, também, por ocultação de cadáver (art.211 do CP). A lei processual permite a condenação mesmo sem a localização do corpo, mas as provas devem ser suficientes para comprovar o homicídio. Tivemos outros casos semelhantes no país, com desaparecimento do cadáver e réu condenado. Não é o único. O debate a respeito de tais crimes perpetrados por regimes totalitários é diverso e bem mais complexo.
Correio da Cidadania: O fato de ter sido cometido com colaboração de um ex-agente do Estado brasileiro não deveria suscitar um outro debate, para além da barbaridade do crime em si?
Ricardo Prado Campos: Ainda usamos violência para combater violência. O Estado também usa. Será que um dia conseguiremos resolver esse problema com outros métodos? Alguns países conseguiram reduzir esse emprego por parte da polícia, vários grupos trabalham sem armas de fogo, mas a população ajuda. As ocorrências graves são em pequeno número. Aqui ainda estamos num estágio anterior. Inviável pensar em desarmar policiais quando os criminosos estão fortemente armados.
Quem sabe num futuro, quando nossos índices de criminalidade se reduzirem, possamos avançar nesse ponto. Por enquanto, é necessário investir em fiscalização do uso da força pelo Estado e na formação, inclusive jurídica e humanística, dos policiais. Sempre haverá espaço para evoluir na área. Agentes de segurança não podem se transformar em agentes da violência, mas o fio de separação é tênue.
Correio da Cidadania: Qual seria um desfecho razoável para o caso, a seu ver?
Ricardo Prado Campos: O desfecho esperado é de que as pessoas condenadas, não apenas neste, mas em todos os casos, cumpram suas penas. E, depois, refaçam suas vidas de uma maneira melhor.
A lei é importante instrumento de educação da população, para sabermos o caminho a seguir: o que é certo e o que não é recomendável. Mas, para valer, a lei tem de ser aplicada constantemente. Neste caso, ele já cumpriu uma parte de sua pena, isso deve ser reconhecido. Se terá mais a cumprir – ou não, o tribunal deverá decidir.
Esperemos que não demore tanto.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

Clique aqui para ler o original

Imagem: Arquivo/Web