13/11/2015

Por Rogério Alvarez de Oliveira e Wanessa Gonçalves Ribeiro da Silva

O conceito de corrupção pode ser compreendido como um comportamento sistemático e reiterado de violação da moralidade administrativa por parte do funcionário público, no seu sentido amplo, que causa danos sociais relevantes, atingindo o sistema social e as estruturas do estado (Livianu, 2014).

Atualmente, as consequências do ato lesivo ao erário não se restringem ao Estado em que fora praticado, pois os ativos, em geral, são transferidos para jurisdições internacionais com o fito de afastar a aplicação da Lei Penal.

Assim, são raros os casos em que o agente público e os terceiros que com ele colaboram simplesmente depositam os ativos desviados em contas pátrias.

O objetivo da transferência internacional de valores é contar com as benesses estabelecidas em paraísos fiscais listados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil na Instrução Normativa 1.037, que, inclusive, ampliou a lista, conhecida como “black-list”, de países que tenham “regimes fiscais privilegiados”.

Importante esclarecer que até as fases da lavagem de dinheiro se caracterizam de forma a considerar a evasão de ativos, ainda que tal não seja essencial para a configuração do delito, mas é o que em tese melhor garantiria a impunidade.

Segundo a melhor doutrina, são três as fases da lavagem de dinheiro: colocação (placement), em que atuam, principalmente, “laranjas”, “homens de palha” e doleiros; ocultação (layering), com a estruturação de “offshore” em paraísos fiscais, por exemplo; e, por último, integração (integration), quando o agente utiliza os ativos para investimentos, dentre outras atividades.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define os paraísos fiscais como “una jurisdicción que se configura activamente a sí misma con el fin primordial de evadir impuestos”, ou seja, qualquer território com baixo nível de tributação para operações financeiras de não residentes e que ofereça forte sigilo sobre o conteúdo dessas operações (Murphy, 2005).

Segundo a Tax Justice Network, há entre US$ 21 bilhões e US$ 32 bilhões de riqueza privada sem tributação ou com pagamento mínimo de impostos.

Essas jurisdições conhecidas como “paraísos fiscais” se utilizam do sigilo bancário para atrair ativos, legítimos ou ilegítimos, promovendo a liberalização do sistema financeiro internacional.

Importante, também, lembrar o que significa a expressão “offshore”, que em simples tradução significa “ultramar”, ou seja, determinada categoria de embarcação marítima e técnica de extração de petróleo em águas profundas.

No caso das empresas, a expressão é utilizada para designar uma sociedade constituída fora do país onde residem seus dirigentes.

No entanto, hodiernamente, “offshore” passou a definir uma empresa criada em paraíso fiscal onde não se desenvolve nenhuma atividade societária, existente somente com o fito de realizar operações financeiras protegidas por benesses tributárias e realizar investimentos onde as aplicações de recursos sem origem comprovada são aceitas e o sigilo bancário é garantido.

Assim, as “offshores” se tornaram um importante instrumento de lavagem de dinheiro e sonegação de impostos, estruturando o encobrimento da origem ilícita de dinheiros e dificultando a persecução penal.

A evasão de divisas, a estruturação de “offshores” e a remessa de dinheiros de origem espúria para jurisdições internacionais impulsionou a relativização do conceito de soberania.

Segundo Jean Bodin, a soberania se caracteriza como o poder absoluto de uma República. No entanto, não há um absolutismo exclusivo, mas concorrente, pois é absoluto apenas em seu território (Marques, 2010).

A relativização da soberania das jurisdições internacionais, como forma de resguardar a indenidade do sistema financeiro internacional, nasce, primordialmente, no âmbito universal, com a Convenção das Nações Unidas sobre o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas realizada em Viena em 1988 (Decreto 154/1991); após, com a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional realizada em Palermo em 1997 (Decreto 5015/2014); em seguida, com a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção realizada em Mérida e adotada em 2003 pelas Nações Unidas (Decreto 5.687/2006) e a Convenção dos países da Organização para a cooperação e desenvolvimento econômico (OCDE) contra a corrupção (Decreto 3.678/2000).

Já no âmbito regional destacam-se a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal da Organização dos Estados Americanos de Nassau (OEA), firmada em 1992 (Decreto 6.340/2008), a Convenção Interamericana contra a Corrupção da OEA realizada em Caracas, em 1996 (Decreto 4.410/2002), e o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa de Las Lēnas, assinado em 1991.

Salutar lembrar que também foram firmados diversos acordos e tratados bilaterais de cooperação judiciária com a Itália (Decreto 862/1993), com Portugal (Decreto 1.320/1994), com a França (Decreto 3.324/99), entre outros.

Também são atores do combate ao crime transnacional o Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI/FATE), criado pelo G-7 no âmbito da alhures mencionada OCDE.

O Brasil, que já havia criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) com a Lei 9.613/1998, somente passou a integrar referido grupo em 2000, quando cumpriu quarenta recomendações concernentes ao combate à lavagem de dinheiro e a cooperação judiciária internacional.

Esses documentos e órgãos internacionais formam um sistema estruturado de combate à corrupção e a lavagem de dinheiro, com o fito de desestimular referidas condutas e auxiliar na repatriação de ativos.

Conforme enumera Marques, os principais instrumentos trazidos ou aperfeiçoados por referidos acordos e tratados internacionais são as cartas rogatórias, o pedido de auxílio direto, a homologação de sentença estrangeira e a comunicação espontânea.

A carta rogatória, prevista no artigo 105, inciso I, alínea “f”, da Constituição Republicana de 1988, obedece primordialmente ao disposto no tratado ou protocolo do Estado destinatário.

Subsidiariamente, caso não haja tratado ou tampouco protocolo, se aplica o procedimento padrão de remessa da carta rogatória por via diplomática ao Ministério da Justiça, após ao Itamaraty, em seguida, ao Superior Tribunal de Justiça, com intimação e defesa da parte interessada, manifestação do Ministério Público, exequatur e cumprimento da medida, conforme Resolução 9/2005.

É importante esclarecer que mesmo quando a carta se caracteriza como executória (prevendo medidas de sequestro e indisponibilidade de bens), deve ser devidamente cumprida após o exequatur do Superior Tribunal de Justiça, inclusive devido aos acordos e tratados supramencionados e devido ao necessário respeito ao princípio da reciprocidade no direito internacional.

Por sua vez, o pedido de auxílio direto ou “request for legal assistance”, que surgiu inicialmente com a Convenção de NY sobre prestação de alimentos no exterior, de 1956 (Decreto 56.826/65), é expedido por autoridade judicial, ministerial (do Ministério Público) ou policial e após transmitido pela autoridade central ao Estado destinatário. A autoridade central é quem faz a “ponte” entre os órgãos de investigação dos países interessados, podendo ser, em regra, o Ministério da Justiça, por meio do Departamento e Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) ou do Departamento de Estrangeiros (DEEST). Em alguns casos, esse papel cabe à Procuradoria-Geral da República (nos termos das Convenções de Portugal, Canadá e NY).

Conforme diferencia Marques, enquanto na carta rogatória passiva há juízo de delibação por parte do STJ, no auxílio direto há somente uma solicitação, sendo imprescindível para a sua utilização um instrumento internacional que dispense a carta rogatória.

Ratificou a importância desse modo de colaboração recíproca a subscrição do Acordo de Assistência Legal Mútua em Matéria Penal (MLAT – Mutual Legal Assistance) entre o Brasil e os Estados Unidos, internalizado pelo Decreto 3.810/2001.

O pedido de auxílio direto afasta a necessidade de remessa ao Itamaraty e ao Superior Tribunal de Justiça, passando somente pela autoridade central, que pode ser a PGR, o DRCI, ou outro órgão, conforme o caso.

Ainda, a homologação de sentença estrangeira é realizada com fundamento na mesma Resolução 9/2005 do Superior Tribunal de Justiça e visa a dar exequibilidade a decisões estrangeiras, com juízo de delibação, contestação, manifestação do Ministério Público, decisão e seu cumprimento.

Por fim, a comunicação espontânea, prevista na Convenção de Palermo de forma implícita, e na de Mérida, prevista de forma explícita em seu artigo 46, item 4, permite a remessa espontânea de informações sem a necessidade de intermediação, nem mesmo por autoridade central.

Essa comunicação espontânea serve como uma “notitia-criminis”, tendo em vista que em respeito ao princípio da reciprocidade internacional um Estado signatário de acordo ou tratado não deve se esquivar ao descobrir indícios e provas de fatos objetos de investigações ou processos em outro Estado-parte. Salutar esclarecer que nas investigações sob sigilo a doutrina especializada sugere que haja a intermediação da autoridade central, mas não há essa previsão expressa nas convenções supramencionadas.

Não se verificam, portanto, quaisquer violações ao contraditório e ampla defesa quando da utilização do pedido de auxílio direto ou da comunicação espontânea como instrumentos legais, pois a estruturação dos sistemas universal e regional de combate à corrupção visam justamente a dar celeridade no intercâmbio de indícios e provas, realizando-se, de forma diferida, a ampla defesa e o contraditório.

Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

Wanessa Gonçalves Ribeiro da Silva é advogada, especialista em Direito Constitucional e em Direitos Humanos.