Uma homenagem ao povo indígena brasileiro

Airton Florentino de Barros, fundador do MPDemocrático e foi procurador de justiça em SP. É advogado e professor de Direito Comercial.

Fala-se muito hoje nas falsas informações que, aparentemente sem possibilidade de controle, tomaram conta da grande mídia e das plataformas digitais e redes sociais virtuais, convertendo-se no principal instrumento à disposição da banda podre dos formadores de opinião, para a criação, manutenção ou extinção de espaços do poder político e econômico.

Da parte de agentes políticos, comunidades científicas, artísticas e populares só se vê manifestação de excessivo medo, especialmente depois das recentes notícias acerca da suposta influência das tais fake news em importantes processos eleitorais estrangeiros.

Esse temor, que agora aparece aqui com tamanha intensidade, se, de um lado, afigura-se irônico para uma sociedade que sempre preferiu dar fé a informações governamentais e aos carimbos oficiais, sem os conferir, de outro, chega com séculos de atraso.

Ora, os governantes do Brasil, pré e pós-cabralinos, ora com o auxilio de senhores da igreja, ora de mercenários e até de historiadores, sempre conseguiram convencer o povo brasileiro das chamadas versões oficiais que, frequentemente, não passavam de falsas notícias.

A verdade é que o povo indígena brasileiro foi a primeira e maior vítima dessas históricas mentiras, a seguir exemplificativamente apontadas.

Ainda se acredita que os aborígenes brasileiros seriam os mais atrasados do planeta, porque teriam se afastado de centros civilizados, por migração do oriente para o ocidente, através do Estreito de Bering. Poucos corajosos historiadores, como Lund e Magarinos, chegaram à inversa conclusão, ou seja, de que, autóctones, teriam sido eles pioneiros na formação de correntes civilizatórias.

Aprende-se, mesmo nos dias atuais, que Cabral descobriu o Brasil em 1500 e que a ocupação do território pelos portugueses decorreu de grande e demorado trabalho de negociação, casamentos de mulheres indígenas com aqueles, além de incontáveis contatos amigáveis.

Todavia, há registros rupestres em diversas regiões do país indicando visitas de civilizações médio-orientais há milênios. A divindade mítica Sumé, venerada pelos brasilíndios, é atribuída a certo sumério, importante visitante há milhares de anos. Mesmo o espanhol Pinzón teria fincado bandeiras no Ceará antes de Cabral.

Já a ocupação do território nunca foi negociada. Tratou-se de grilagem criminosa negociada pelos reis espanhol e português, homologada pela igreja católica e instrumentalizada por meio do Tratado de Tordesilhas, de 1494, documento que, desconsiderando a existência de reis indígenas, representou título de propriedade do Brasil aos portugueses, com autorização de posse imediata, ainda que logo contestada por ingleses, franceses e holandeses.

Os tais contatos amigáveis de negociação se deram aos tiros de canhões e golpes de facões, especialmente depois da fundação de São Vicente em 1532. Sim, o esbulho foi sangrento. E os índios brasileiros revelaram-se heroicos. É que, como achavam a liberdade imensamente maior e muito mais importante que a vida, lutavam e lutaram até a morte.

É certo que regras internacionais herdadas do Direito Romano já proibiam a invasão de territórios estrangeiros, exceto para responder, em guerra, à invasão de seu próprio território ou para a catequização de pagãos e instrução de comunidades em estado animalesco. Para justificar a invasão do território brasileiro, então, afirmavam os portugueses disporem de titulo de propriedade e posse, cuja validade os nativos insistiam em não reconhecer. Daí a declaração de confronto armado com a consequente tentativa de escravização dos derrotados.

Não adiantou a luta do frei dominicano De Las Casas para, a partir do Caribe, demonstrar o contrário à comunidade europeia.

Hans Staden, por exemplo, foi contratado pelos invasores para convencer o continente europeu de que os aborígenes brasileiros tanto viviam em estado animalesco, que chegavam a aprisionar homens brancos para a prática do canibalismo, ritual de que ele mesmo teria sido vítima, farsa que iludiu respeitados historiadores brasileiros e até grandes nomes da literatura nacional, como, por exemplo, Monteiro Lobato.

No entanto, nem havia antropofagia, nem admitiam os índios a prisão de seres humanos. Aliás, não aprisionavam nem mesmo animais, tamanho o seu respeito à liberdade. Tanto que preferiam expulsar da aldeia os criminosos locais do que prendê-los.

Não é necessário se aprofundar nos estudos da antropologia nacional para, compreendendo ainda que superficialmente a lógica do espírito indígena, rechaçar essa enganação difamatória.

Mais tarde, para justificar o sequestro de negros africanos e acalmar seu protesto contra o fato de não se dispensar igual tratamento aos índios, os portugueses forjaram mais uma deslavada mentira, no sentido de serem os índios fracos, vagabundos e preguiçosos. Ora, os indígenas pátrios sempre foram muito fortes e trabalhadores, mas o seu sentimento de liberdade tornava-os avesso à escravidão, a tal ponto que preferiam a morte.

Enquanto os africanos indagavam: “de que vale a liberdade sem a vida?”, os índios brasileiros respondiam: “de que vale a vida sem a liberdade?” E os portugueses se aproveitaram disso, sempre com muita violência. De forma progressiva, continuavam a traficar escravos negros e a dizimar os índios.

Ledo engano pensar que os jesuítas vieram para aliviar o abuso sanguinário dos invasores. Aceitaram a triste atribuição de levar os índios ao processo de escravização, por meio de diversos artifícios. Para o jesuíta norte-americano James Martin, há duas formas de subjugar um ser humano: pela coação e pelo sentimento de culpa. Usaram as duas ao mesmo tempo. À força, e sob escolta militar, tiravam das mães os meninos de 8 a 14 anos e os levavam, sob o pretexto da necessidade de catequização, para suas fazendas, onde lhes impunham trabalho cada vez mais pesado. Desesperadas, suas mães também acabavam submetidas. Ao preço de se aproximarem dos filhos, ficavam trabalhando para os padres e, em seguida, para os portugueses. Conforme o tempo passava, os indígenas substituíam seus valores culturais pelos da chamada civilização branca, a que se submetiam gradativamente.

Nunca foram solidários, jamais defendendo os índios da frequente acusação de sua suposta ignorância de origem. De um lado, diziam que os índios eram incapazes de formarem uma horta, por não dominarem técnicas de plantio. De outro, apropriavam-se furtivamente de conhecimentos medicinais indígenas. Há informações confirmadas de que, no século XVI, quando aqui chegaram, os europeus utilizavam-se de aproximadamente 300 espécies vegetais para fins medicinais, enquanto os índios conheciam a função medicinal de mais de 3.000 espécies e estas, por mais incrível que pareça, representariam 75% das espécies hoje exploradas pelos modernos laboratórios.

Não custa registrar que, logo em meados do século XVI, a Confederação dos Tamoios, enquanto presidida por Cunhambebe, a partir de Ubatuba, tentou por um fim a esse processo violento de domínio, destruindo vilas e libertando escravos, mas acabou traída por falsas informações dos mesmos jesuítas. O ponto positivo é que, depois de muito tempo, publicamente, Francisco pediu desculpas.

Para finalizar, é muito importante ter em conta que ainda hoje as populações indígenas, inquestionavelmente as maiores protetoras da ecologia, além das falsas informações, até mesmo de órgãos oficiais, são obrigadas a enfrentar grande violência, abuso e desprezo, ao lutarem pelo efetivo exercício de seu direito natural e constitucional de, por meio da demarcação de terras tradicionalmente ocupadas, preservarem a natureza e seus costumes, idiomas, crenças e tradições.

Diante de tais circunstâncias, não pode haver dúvida de que, seja pelos antecedentes históricos, seja pela herança da coragem indígena, a população brasileira não terá dificuldade de enfrentar o anunciado festival de mentiras que se avoluma diariamente.