Um ato de desagravo, em apoio à promotora Claudia Ferreira Mac Dowell organizado pela Associação Paulista do Ministério Público (APMP) e pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) lotou o Plenário 10 do Fórum da Barra Funda, nesta segunda-feira, 16. Cerca de 200 pessoas, entre Promotores e Procuradores de Justiça, magistrados, advogados, lideranças da sociedade civil e familiares participaram do evento. Os presentes demonstraram sua indignação aos comentários de cunho homofóbico proferidos pelo advogado Celso Vendramini no Tribunal do Júri de São Paulo.
Confira abaixo o discurso da Dra. Cláudia na íntegra:
“Eu preciso falar de duas coisas para vocês: empatia e visibilidade. Da empatia, eu começo falando sobre alguém que não sabe o que ela é.
Esse alguém é um ninguém que no ano passado escreveu um post numa página minha de uma rede social: “você posta tanta coisa defendendo os gays, você tem alguém próximo que seja gay?”; ao que eu respondi: “tenho, sim, a minha esposa”.
O ninguém em questão não conseguia entender que alguém pudesse defender os direitos dos gays se não tivesse alguém “muito próximo” nessa situação.
Na cabeça dele, só quem está vivendo um problema, um dilema, uma situação crítica qualquer, por si ou por alguém “muito próximo”, é capaz de se condoer por essa situação.
Ele simplesmente não sabe o que é empatia.
Todo este evento grandioso só acontece porque vocês não são o ninguém. Todos aqui sabem o que é empatia, porque a praticaram. Estão aqui!
Embora eu veja aqui homossexuais, transexuais, travestis, bissexuais, eu vejo muito mais heterossexuais – e que provavelmente não têm ninguém “próximo” que seja LGBTQI, mas estão aqui; eu também vejo promotores do júri, que até já trabalharam com aquele advogado e têm histórias para contar a seu respeito, mas eu vejo muitos outros colegas que não são do júri e até aqueles que nem da área criminal são, mas estão aqui; assim como eu vejo analistas, advogadas e advogados, defensores públicos, juízas e juízes, funcionários, estagiários, gente de outras profissões, que nem jurídicas são, muita gente que nem me conhece. E tem até os que me conhecem, nem gostam muito de mim, mas estão aqui, assim mesmo.
Vocês todos estão aqui porque, independentemente de quem eu seja, eu, Cláudia, promotora de justiça, fui alvo de um ato de preconceito; e vocês conseguiram se colocar no meu lugar, independentemente de quem vocês sejam e de quão diferentes de mim vocês são; vocês se colocaram no meu lugar e se horrorizaram como eu me horrorizei, se inconformaram como eu me inconformei e vieram aqui juntar a sua voz à minha.
Vocês sabem o que é empatia e este ato é grandioso justamente porque ele mostra do que a empatia é capaz.
Se a gente, Humanidade, tem conserto neste século XXI, com tudo o que acontece à nossa volta, o conserto passa necessariamente pela empatia.
E como eu acredito que a empatia é um sentimento dos mais poderosos, eu sei que ela gera mais empatia e não tem limites, não é estreita e nem estática. Ela é elástica, ela vai se distendendo e se retroalimenta da própria potência.
Então eu vou lhes propor um exercício de elasticidade, só para lhes mostrar do que todos nós somos capazes.
Do mesmo jeito que vocês conseguiram se colocar no meu lugar, naquele júri dos dias 6 e 7 de novembro, eu proponho que se coloquem no lugar de uma outra promotora de justiça, da Bahia, a Dra. Lívia Vaz, que há três anos passou a trabalhar em um grupo de trabalho de defesa de direitos humanos e combate à discriminação, o que lhe deu visibilidade, mas nos seus doze anos anteriores no Ministério Público enfrentava desafios diários para provar que era promotora. Sim, porque ela é negra e não era raro que tivesse que mostrar a carteirinha quando comparecia a eventos oficiais, para provar que era, sim, promotora.
Agora eu proponho que vocês se coloquem no lugar do vereador Daniel Annenberg, que na semana passada, no plenário da Câmara Municipal foi chamado de “judeu filho da…”, no meio do que deveria ser um debate parlamentar.
Mas, não paremos. Agora eu proponho que vocês se coloquem na pele do filho de uma colega nossa, que aos dezenove anos de idade foi expulso do táxi em plena Avenida Paulista, em plena luz do dia, porque o taxista não admitia “viados” no seu carro.
Vamos esticar um pouco mais: o que a gente sente quando se imagina na pele lindamente negra da atriz Cacau Protásio, ouvindo um bombeiro dizer para outro que ela é “gorda, preta, filha da …”? Isso dói na gente, não dói?
Agora imaginem como deve doer para aquela filha, para aquela esposa, para aquele pai, aquela mãe, aquela irmã, que hoje de manhã acordaram e, depois de 642 dias ainda se perguntam, sem resposta: quem, afinal, mandou matar Marielle?
Sem empatia, a dor do outro é só … a dor do outro. Mas este evento é grandioso, justamente porque vocês estão demonstrando que não querem viver num mundo sem empatia. Vocês não querem que a dor do outro seja só a dor do outro.
Com a empatia que vocês praticam, aqui, neste momento, vocês estão colocando em prática aquilo que a Angela Davis vem repetindo exaustivamente (e é bom que ela o faça e que seja repetida ad nauseam): não basta não ser racista (e eu completo: não basta não ser homo/transfóbico); a gente tem que ser antirracista, antihomofóbico, antitransfóbico.
Então eu vou aproveitar que a empatia já está suficientemente enaltecida para falar da outra coisa a que eu me referi, lá atrás: a visibilidade. E, do mesmo jeito, eu começo falando dela pelo seu contrário, a invisibilidade.
Uma grande pensadora contemporânea, infelizmente já falecida, mais uma dessas lúcidas e brilhantes mulheres negras da atualidade, a professora doutora Azoilda Loretto da Trindade, dizia que “a invisibilidade é a morte em vida”.
Embora num outro contexto, ela quis dizer quase a mesma coisa que o Harvey Milk, um ativista gay norte- americano da década de setenta e que foi morto justamente por conta desse ativismo.
O Milk dizia que a gente não ia ganhar nenhum direito ficando quietinho dentro do armário.
E ele conclamava médicos, juízes, arquitetos, jornalistas, que assumissem publicamente que eram gays e lésbicas, porque no dia em que todos fizessem isso, dizia ele, o resto do mundo iria perceber que a gente está em toda parte e que a gente é igual a todo mundo, mesmo com todas as nossas diferenças (digo eu).
E quando a gente for vista, quando a comunidade LGBTQI+ for vista, dizia Milk, “os mitos, as mentiras, as insinuações, serão destruídas, de uma vez por todas”.
Sim, porque o preconceito, dentre as várias fontes de que se nutre, bebe direto na fonte da ignorância.
A ignorância, junto com muito ódio e várias pitadas de má-fé levam àquilo a que Harvey Milk se referia, os mitos, as mentiras, as insinuações.
“Tirem os homossexuais de perto das crianças!” Por que? “A Parada Gay consiste num bando de gente que fica conspurcando símbolos religiosos na Avenida Paulista!”; como assim? “O movimento LGBT odeia a Polícia Militar”; quem disse isso?
Nós não podemos mais nos ignorar, uns aos outros. A gente tem que se conhecer.
Quando a gente se conhece (e não precisa concordar para conhecer, basta saber ouvir o que o outro verdadeiramente tem a dizer), quando a gente se conhece fica mais difícil ignorar a dor do outro.
Por isso a Professora Azoilda gritava contra a invisibilidade. Quem está invisível, morre do nosso lado e a gente nem se dá conta.
A visibilidade, portanto, é uma poderosíssima arma. É, talvez, o melhor instrumento de defesa para quem está do outro lado da linha demarcada pelo privilégio.
Isso explica tanto rancor daquele certo advogado justamente pela visibilidade: “Bom é o Putin, que acabou com esse negócio de passeata gay na Rússia”.
Em um artigo maravilhoso publicado pelo GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra, em setembro deste ano e intitulado “Eu me arrependo dos meus silêncios”, a filósofa Djamila Ribeiro (mais uma dessas grandes mulheres negras que precisam ser lidas e ouvidas) se referiu a outra dessas fundamentais pensadoras, uma poetisa negra americana de origem caribenha, lésbica, chamada Audre Lorde, que a respeito desse tema, depois de admitir que, sim, a visibilidade em um primeiro momento nos torna mais vulneráveis, porque nos expõe, em seguida concluiu:
“Por causa do silêncio, cada uma de nós leva na cara a imagem do seu próprio temor: temor ao desprezo, à censura, aos julgamentos, à aniquilação. Mas acima de tudo, o temor à invisibilidade. Há muitas maneiras de ser vulnerável e eu não posso evitá-las. Não vou me tornar ainda mais vulnerável colocando o silêncio como uma arma nas mãos dos meus inimigos”.
Por isso Harvey Milk falou, anos antes, que “a esperança nunca será silenciosa”.
E de uma maneira tragicamente profética, ele vaticinou: “se uma bala atravessar o meu cérebro, deixe que ela vá destruir cada porta de armário existente neste país”.
Marielle presente! Muito obrigada.”
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