Fabíola Sucasas*

19 Julho 2018 | Estadão – Blog do Fausto Macedo 

Gênero, ideologia de gênero e expressões afins têm mobilizado iniciativas de leis contrárias à inclusão da temática nas escolas, na crença de que são ameaças à família brasileira, a partir da tramitação do Plano Nacional de Educação, cujas palavras gênero e orientação sexual foram suprimidas do texto. Entretanto, de fato, é a intolerância com o tema que desestruturado famílias e conturbado o ambiente de aprendizagem social nas escolas.

Pesquisadores apontam haver uma confusão atribuída ao uso da expressão “ideologia de gênero”, que não se coaduna e tenta deslegitimar a área dos estudos de gênero, marginalizando os grupos mais vulneráveis que diretamente lhes são afetos: os movimentos feministas e LGBTQI (transgênero, queer, ou pessoas de gênero fluido e intersexuais).

Nas ações propostas contra as iniciativas de lei, o MPF atenta para o fato de que a expressão “ideologia de gênero” é equivocada, pois disfarça e tolhe a temática no campo dos direitos e do processo educativo.

Vamos aos pontos.

Primeiro, sexo e gênero não se confundem! Enquanto sexo se refere a um aparato biológico que diferencia homens e mulheres, gênero cuida das construções sociais que advém destas diferenças.

Segundo, a palavra orientação sexual – e não opção sexual – compreende a atração e o desejo sexuais de um indivíduo por um outro; os heterossexuais se atraem pelo gênero oposto, os homossexuais se atraem pelo mesmo gênero e os bissexuais se atraem por ambos os sexos.

Terceiro, identidade de gênero diz respeito ao gênero pelo qual a pessoa se identifica. Uma pessoa é transgênera se possuir identidade de gênero diferente daquela correspondente ao seu sexo biológico; uma pessoa cisgênera possui identidade de gênero correspondente ao sexo biológico independente da orientação sexual, homossexual ou heterossexual.

As travestis se referem a identidade de gênero feminina, que apesar de se vestir como mulher e fazer tratamento hormonal feminino, não tem desconforto com a genitália; cross dresser, drag queen e drag king cuidam de quem ocasionalmente se veste com roupas de características do outro gênero, mas as duas últimas para performances artísticas.

A revista National Geographic Brasil reuniu em uma de suas capas 15 indivíduos de variadas expressões de gênero e trouxe um glossário para explicar cada uma delas. LGBTQ cuida-se de “acrônimo usado para se referir a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer e outros questionadores”; “queer” é um termo coringa que abarca uma gama de pessoas que não é heterossexual ou cisgênero.

Uma pluralidade protegida pelo direito à igualdade, de onde surgem os direitos da diversidade. O Estado brasileiro tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e por objetivos promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e o de construir uma sociedade livre, justa e solidária.

A escola é um espaço de aprendizagem e também de exclusão e preconceito. São mulheres, além de jovens e adultos LGBTQI, alvo de abordagens humilhantes, brincadeiras jocosas, insinuações inferiorizantes, além de piadas e expressões desqualificantes, na verdade conduzidas pelas normas de gênero da heteronormatividade e pela construção do modelo hegemônico de masculinidade, causas de intenso sofrimento.

Se meninos e meninas são socializados a partir do que foi convencionado como comportamentos aceitos e tipificados para o sexo feminino e masculino e se as escolas fazem parte deste processo, não há dúvida de que a abordagem de gênero é necessária. Tal como o Ministro Luis Roberto Barroso decidiu em uma liminar, a diversidade é um fato da vida, um dado presente na sociedade e que alunos terão que lidar. Afinal, a educação deve voltar-se à promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, além do que normas internacionais ratificadas pelo Brasil reconhecem que ela deve visar a capacitação para a vida em sociedade e ao irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

O prejuízo em proibir as referidas expressões e abordagens nas escolas é incalculável e passível de ser reconhecido como uma prática discriminatória; por outro lado, abolir as proibições é uma porta para a transformação. Algumas experiências práticas mostram isso.

Um exemplo é a regulamentação do uso do nome social de discentes travestis e transexuais na rede estadual de ensino de São Paulo. Subiram as matrículas de estudantes trans, em sua maioria na Educação de Jovens e Adultos, mostrando o retorno aos processos de escolarização formal. Outro exemplo é o projeto Vozes pela Igualdade de Gênero, parceria do MPSP com a Secretaria de Estado de Educação, visando fomentar a discussão sobre o enfrentamento relacionado às desigualdades de gênero.

A iniciativa propõe para alunos/as a participação em um concurso musical, cujos temas como ’10 anos da Lei Maria da Penha’, ‘Respeito às Diferenças’ e ‘Em todos os lugares, em pé de igualdade’ são o impulso para a criação das canções; o concurso também promove uma reflexão pública ao instar o voto para a eleição das canções inscritas e à gravação em estúdio de renome, instrumentos estratégicos para a perpetuação do debate.

Cabe aqui um apanhado de algumas frases das músicas finalistas da 2.ª edição do concurso, que além de revelar o que foi aprendido por alunos/as, mostra que abordar gênero nas escolas não é ameaça, mas um instrumento para uma sociedade mais humana e igualitária: Na luta por uma sociedade igualitária, temos muitos que ferem. Que indignação! Nesse mundo tão inverso, julgam a sua forma de andar, mas o que está por dentro não pensam em perguntar. Ah, o respeito! Seja quem for, seja onde for, nós somos mais do que a cor. Vou lutar por um mundo de amor, independente do credo, da cor, do gênero, o que for… Pra acabar com a discriminação, preciso de vocês irmãos! A sua atitude pode transformar alguém, abra os olhos, saia do escuro. Erguemos nossa bandeira, vamos juntos na militância, em uma luta de importância, com direito de existir.

*Fabíola Sucasas, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo e integrante do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

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