MP NO DEBATE

PEC 89: uma afronta ao Estado Democrático de Direito

20 de julho de 2015, 16h29

Por Roberto Livianu
No último dia 17, o Sindicato do Ministério Público de Portugal, em entrevista coletiva à imprensa, denunciou gravíssimo ataque à autonomia do MP daquele país contida em proposta de modificação da sua Lei Orgânica, que propõe subordinação do MP ao Poder Executivo.
O sindicato classifica a proposta do Ministério da Justiça como “um dos maiores ataques à autonomia do Ministério Público desde o 25 de Abril”, referindo-se ao 25 de abril 1974, data da queda da ditadura de Salazar naquele país.
“Se se entender que o poder político não deve ser investigado, então aprove-se este estatuto”, desafia o presidente do sindicato, António Ventinhas. “Com esta proposta, pretende-se que o Ministério da Justiça passe a mandar no Ministério Público” — o que, do ponto de vista dos dirigentes sindicais, é “gravíssimo, intolerável, inadmissível” e mesmo um retrocesso civilizacional.
Infelizmente, a tentação autoritária é fenômeno mundial, e, no Brasil, oito dias antes, o Deputado Hugo Leal, do PROS/RJ, integrante da base aliada do Governo Federal, que se vê em situação dificílima em face das investigações decorrentes da operação “lava jato”, já havia apresentado Proposta de Emenda à Constituição Federal (89) que propõe a criação de juizados de instrução criminal sob a presidência de Delegados de Polícia.
Como se sabe, há séculos, desde o Iluminismo, o mundo vem caminhando na direção da separação de poderes, como ideia essencial para a democracia, utilizando-se o conceito de Charles-Louis de Secondat, conhecido como Montesquieu, construído na obra O Espírito das Leis, de 1748, da tripartição do poder nas vertentes Executiva, Legislativa e Judiciária.
Montesquieu concebeu um sistema de freios e contrapesos, dos poderes se autocontrolando, cabendo aos magistrados dar concretude à vontade abstrata da lei e neste espírito a Constituição Federal consagra como garantia fundamental a inafastabilidade da apreciação judicial de lesões a direitos.
Os verdadeiros juizados de instrução existentes em países europeus como a França e Itália tem em sua concepção a figura de juiz de instrução presidente, integrante da Magistratura, sendo elementar que a atividade de polícia judiciária auxilia o sistema de justiça, e não o contrário (Delegado de Polícia presidindo sendo auxiliado por magistrados).
A lógica deste sistema é colher a prova numa única oportunidade e o juiz de instrução preside a tarefa desde o princípio.
No sistema, é bom lembrar, Delegados de Polícia são subordinados ao Poder Executivo. A nível estadual, aos Secretários de Segurança Pública (e estes, ao Governador). A nível federal, ao Ministro da Justiça, e este, ao Presidente da República.
Portanto, é obvio que não podem os Delegados de Polícia (integrantes do Poder Executivo) exercer atos inerentes ao exercício da Magistratura, hipótese que viola o núcleo da Constituição Federal – separação dos poderes.
A PEC 89 propõe que se permita ao Poder Executivo exercer atos jurisdicionais, verdadeira aberração jurídica.
Além disso, a PEC 89 propõe indesejável retrocesso ao sistema inquisitorial em detrimento do contraditório, podendo ferir direitos processuais fundamentais.
Além disso, a presença do Ministério Público no Brasil, que se inicia em 1609 perante o Tribunal de Relação da Bahia, tem como marco histórico a Constituição Federal de 1988, que incumbe o MP da concretização da cidadania, atribuindo-lhe a promoção da ação penal pública, além da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dentro da missão maior de proteção da ordem jurídica e do regime democrático.
A PEC 89 subverte a Constituição Federal também ao desconsiderar o papel constitucional do MP, que é, como já mencionado, o titular da ação penal pública, dotado de poder de investigação criminal.
Inclusive, é importante lembrar, no plano internacional, a construção do Estatuto de Roma, em 1998, fruto de esforços mundiais foi absorvida pelo Brasil pelo Decreto 4388 de 25/09/2002, do qual se originou o Tribunal Penal Internacional (criado para julgar crimes contra a humanidade), que considera o poder de investigação criminal do MP uma das maiores conquistas para a civilização, reconhecido pelo Congresso Nacional, por 430×9 ao rejeitar em 2013 a PEC 37, que propunha o monopólio do poder de investigação criminal para a Polícia e reafirmado em maio último pelo STF ao julgar o RE 593727, com Repercussão Geral, reconhecendo e declarando por 10×1 o poder de investigação criminal do Ministério Público.
A PEC 89, portanto, representa grave afronta ao direito fundamental ao julgamento, os compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário e as recentes deliberações do Congresso e STF, propondo a criação de supostos juizados de instrução criminal sob a presidência de Delegados de Polícia, subvertendo princípios elementares do sistema político brasileiro e do devido processo legal, propondo inadequada concentração de poderes, afrontosa também às prerrogativas dos advogados e direitos dos investigados e representa histórico e indesejado retrocesso para a persecução penal no Brasil.
Tais circunstâncias, levaram o Movimento do Ministério Público Democrático a emitir nota pública de repúdio a esta PEC, seguido pela Associação dos Magistrados do Brasil, que a define como ataque à democracia, esperando-se que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, no pleno exercício do controle de constitucionalidade que lhe cabe, proclame a absoluta inconstitucionalidade da propositura, a bem da prevalência do Estado de Direito em nosso país.
Roberto Livianu é promotor de Justiça em São Paulo, doutor em Direito Pela USP e idealizador e coordenador da campanha Não Aceito Corrupção.
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