MP NO DEBATE

Precisamos de amadurecimento para superar as crises
Por Plínio A. B. Gentil
Os economistas — como os juristas — filiam-se a escolas e cada qual prioriza sua análise em face de diferentes paradigmas. Em termos bem simples, o que para uns é crise para outros não é. Se, por exemplo, alguém considera que o mercado é que deve ser o regulador da produção e da distribuição, o seu ponto de vista sobre um possível problema será necessariamente contrário ao de quem pensa que ao Estado cabe o papel de fixar políticas públicas e, com isso, interferir nas relações de produção e troca. Para estes últimos, o estágio atual do capitalismo não é “o fim da história”, mas uma simples etapa da evolução das forças produtivas, com suas respectivas contradições — e crises seriam parte (necessária) delas.
A vastidão de dados que compõe o universo da economia às vezes nos deixa no meio de um emaranhado de informações, por vezes contraditórias. Assim, ao mesmo tempo em que há notícia sobre retração da indústria automobilística, inclusive de caminhões, vemos outra dizendo que tais e quais fábricas aumentaram sua produção de veículos porque as filas de espera para compra estão imensas. E que concessionárias tencionam investir coisa de R$ 7 bilhões na ampliação da malha ferroviária porque o volume transportado bateu nas alturas, conforme dados da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários. O PIB previsto é baixo, o dólar sobe, mas o país registra um saldo de quase U$ 400 bilhões em reservas cambiais, segundo dados disponíveis no site do Banco Central.
Para os que fazem a crítica à direita dos governos do PT, as principais causas do problema são que, a partir da crise internacional de 2008/2009, o Estado brasileiro gastou muito e controlou preços de energia e combustíveis, impedindo a competitividade das empresas produtoras e as levando a uma descapitalização, além de gerar desconfiança nos investidores estrangeiros. Para a crítica à esquerda, o erro está em, a partir de 2015, cortar gastos e suspender projetos de impacto social, descapitalizando o mercado consumidor das camadas populares. Independentemente do ponto de vista, são fatos incontroversos que houve aumento sensível de juros e que a conjuntura externa é desfavorável por conta da redução do preço dos produtos minerais e agrícolas, item forte na nossa balança de pagamentos.
É óbvio que há erros dos governos petistas, especialmente no setor de geração de energia, que é estratégico. Como é claro que, sem grande esforço, acharemos outros tantos de outros governos, a começar pelo palácio dos Bandeirantes. A hipótese de reconhecer uma crise não acarreta descartar a hipótese de que ela simplesmente resulte de um movimento cíclico do modelo econômico. Também não implica necessariamente em condenar o governo, sob o argumento de que investiu em programas sociais e elevou o salário mínimo, ao invés de financiar com tanto empenho a iniciativa privada. Acusá-lo de irresponsabilidade financeira por tal motivo equivale a negar prioridade àquilo que foi por ele priorizado, o que nos traz de volta à questão das escolas de economistas: para os arautos do livre mercado, apostar no consumo interno e interferir na produção e nos negócios constitui um pecado mortal; para os que cultuam certo estatismo, é uma qualidade, que tem seu preço.
Uma outra hipótese é que, sendo uma crise cíclica, ela vem sendo inflada com argumentos políticos, notadamente por parte dos que vivem de aplicação financeira e têm interesse nos juros altos. Assim, é o Brasil rentista que estaria preocupado e agressivo. Como foram os bancos privados que financiaram a produção, enquanto o BNDES financiava projetos populares, esses bancos lucraram. Manter juros nas alturas representa a continuidade dos seus ganhos, bem como o pagamento de altas taxas aos especuladores. Esses interesses usam os casos de corrupção — que são reais, mas não são os únicos — como combustível para a desestabilização de um governo em cuja vigência os integrantes das camadas mais pobres ascenderam a um certo consumo, aos aeroportos e faculdades — o que também os assusta.
Até que ponto, então, vivemos uma crise econômica real ou artificial é questão que depende, em parte, da escola à qual pertence o analista. Mas de tudo isto há um resultado certo: com baixa produção, porque o investidor aplicou dinheiro com bancos, haverá desabastecimento, os preços subirão e virá mais desemprego. Aí ninguém poderá negar a existência de uma crise.
Como sairemos dela é uma questão que envolve elementos também políticos. Considerando que a grande imprensa divulga que a culpada é a Dilma, tudo que se relaciona ao ideário original do PT, como partido defensor das causas populares, sofre um processo de demonização e desconstrução. Esse processo reflete-se numa pauta desatinada do atual Congresso, um dos mais conservadores que já tivemos, que inclui redução da maioridade penal, constitucionalização do financiamento privado de campanhas eleitorais, flexibilização do estatuto do desarmamento, terceirização, criminalização de manifestações políticas de professores e até o já folclórico projeto da “cura gay”. Tudo isto seria cômico se não fosse trágico.
De outro lado, o barulho das ruas, expressão de um descontentamento difuso de variadas camadas da população, mistura queixas justas, contra o aumento das contas e contra a corrupção, com ensandecidos apelos pela volta dos militares, revelando, senão pura má-fé, o mais escancarado delírio, fruto de absoluta falta de noção histórica. Além do que, esses manifestantes mais alucinados não perceberam que até a Veja e a Globo, que ajudaram a convocá-los para as ruas, já decretaram que “a Dilma fica”. Como fantoche, mas fica.
É preciso, enfim, sair com dignidade dessas crises, seja da econômica ou da política, e sair pela porta da frente, tendo feito a limpeza da sujeira. Por sujeira, além da corrupção, entendam-se principalmente as tramóias do poder econômico para inflar a percepção das dificuldades e usar a ocasião para garantir suas costumeiras vantagens — e quem sabe ampliá-las, obtendo a privatização de atividades como a exploração do pré-sal, do metrô, da Petrobras, de universidades públicas e por aí afora. Aos interessados nisso conta pouco ou nada o abismo que os separa de uma população carente e, em grande parte, despolitizada, para a qual é difícil a possibilidade de mobilização e pressão e que é, consequentemente, dependente das políticas públicas dos governos. Os períodos difíceis costumam ser ricos em lições e a sua superação pode significar uma inigualável oportunidade de amadurecimento. É do que mais estamos precisando.
Plínio A. B. Gentil é procurador de Justiça em São Paulo, doutor em Direito e em Educação e professor universitário. Integrante do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). De 1986 a 1988 exerceu cargo de direção no Ministério da Justiça.
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