“A postura antidiscriminatória deve ser incorporada como uma vertente basilar.” A análise foi feita por Fabíola Sucasas, promotora de Justiça do MP-SP, em entrevista ao site do Ministério Público Democrático (MPD). Membro auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público, Sucasas aponta que o MP paulista tem sido proativo na defesa das mulheres, mas que há espaço para maiores avanços.

A promotora ressalta que o próprio fato do MP ser uma instituição formada em sua maioria por homens brancos já é, por si só, um problema.  “Mas sou otimista. Os ouvidos estão voltados a uma escuta capaz de movimentar as estruturas e creio que este é um dos passos para uma transformação”, afirma.

Sucasas foi coordenadora do Núcleo de Inclusão Social – Direitos Humanos do Centro de Apoio Cível e Tutela Coletiva do Ministério Público de São Paulo. Atualmente, é titular da Promotoria de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Estado de São Paulo, capital, Núcleo Central.

A defesa da diversidade é uma das maiores bandeiras de Sucasas. Na entrevista, a promotora afirma que os objetivos do MP não devem ignorar primados que classifica como básicos: “O Ministério Público serve a uma sociedade formada por pessoas diversas, com suas especificidades, e a quem deve ser salvaguardada a cidadania e o respeito a sua dignidade.”

Mestranda em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Sucasas é também diretora do MPD.

Leia abaixo a entrevista completa:

MPD — Quando decidiu que queria ser promotora de justiça e por quê?

Fabíola Sucasas — Decidi ser promotora de justiça quando cursava a faculdade de Direito, no terceiro ano. Na ocasião, iniciei estágio no Ministério Público na área criminal e logo me encantei com a atuação ministerial. A luta é diária, a todo o momento somos instados a debater, avaliar, refletir, opinar, recorrer, impugnar, pensar nas estratégias e nos instrumentos mais apropriados para uma resposta de justiça que seja não apenas rápida, mas que, antes de tudo, contemple a vontade da lei e da dignidade da pessoa. No estágio, tive a oportunidade de trabalhar com duas promotoras, minhas amigas até hoje, e que me ensinaram muito: Lygia Almeida Santos e Denise Nascimento.

Como mulher, posso dizer que a decisão também se deu para angariar independência e ter instrumentos de voz e ação neste espaço da luta por justiça. Lembro que minha mãe sempre falou: seja uma mulher-promotora, mas não deixe de ser promotora-mulher. É uma frase que me marca até hoje, vinte e três anos depois, e que mostra a importância do olhar de gênero na nossa atuação e na nossa vivência, algo que, se problematizado – tal qual deve ser -, nos leva a adoção de posturas mais condizentes com o sentido da igualdade material.

MPD — Qual o papel que o MP deve ter em uma situação como a pandemia? Acha que este papel está sendo desempenhado?

Fabíola Sucasas — É o papel que lhe cabe enquanto instituição essencial à função jurisdicional do estado e a quem incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Os direitos fundamentais devem ser preservados e o Ministério Público deve zelar por isso. Não há como garantir a dignidade das pessoas quando a desigualdade se traduz em um marcador de (des) acesso a direitos; enfrentar uma pandemia nos dias de hoje não se resume em tão apenas repelir a doença ou garantir condições de saúde, mas também em que usufruto do bem viver seja exercido com respeito e dignidade. Neste passo, é preciso lembrar a elogiosa atuação do Ministério Público de São Paulo, cuja Procuradoria Geral criou o gabinete de crise e organizou suas ações institucionais através de catorze grupos de trabalho. Além do GT Saúde, os grupos de Inclusão Social, Meio Ambiente, Consumidor, Violência Doméstica, Educação, e outros, a partir de um olhar interseccional e coletivo, propuseram enunciados, reuniões com especialistas, sugestões de atuação,  enfim, medidas que se pautavam justamente a partir deste olhar da dignidade. Nenhuma promotora ou promotor de justiça esteve desamparado neste processo, e o fortalecimento de cada um ou cada uma é o fortalecimento da Instituição.

A unidade institucional é um grande desafio a respeito do qual esse exemplo mostra que é possível vencer. O Conselho Nacional do Ministério Público também atuou – e tem atuado – de modo proativo,  com a perspectiva de unidade e de respeito à independência. Não foram poucas as Resoluções, Recomendações, ou outras orientações publicadas neste período. A função tem sido desempenhada de acordo com as possibilidades do momento crítico que vivemos, mas a grandiosidade do Ministério Público em seu sentido legítimo tem marcado cada vez mais sua importância e imprescindibilidade, mesmo diante de tantas mazelas sociais que venham a exigir mais esforços e de obstáculos quase que petrificados das estruturas que nos impedem de avançar.

MPD — O MP cumpre seu papel no combate à violência contra a mulher e o racismo? Acho que a entidade deveria se aprofundar mais nestes temas?

Fabíola Sucasas — O Ministério Público de São Paulo é reconhecido nacionalmente como uma das referências no combate à violência contra a mulher; aliás, no seu enfrentamento, pois sua atuação não se restringe àquela ideia de combate ao crime. O Ministério Público, aliás, inovou, criando projetos como o PVDESF (Prevenção da Violência Doméstica com a Estratégia de Saúde da Família), Guardiã Maria da Penha, Vozes pela Igualdade de Gênero, etc; tem incentivado o empreendedorismo feminino com o Sebrae, tem  estabelecido parcerias, estimulado políticas públicas, construindo pontes, tudo de forma a prestigiar as potencialidades do caráter resolutivo de sua atuação.

Claro que há muito o que percorrer; sempre haverá obstáculos a perseguir quando uma mulher morre ou é agredida, assediada, quando deixa de trabalhar porque foi humilhada em casa. Violência contra a mulher é violação a direitos humanos; a discriminação, idem. A postura antidiscriminatória deve ser incorporada como uma vertente basilar. Não podemos nos esquecer que não estamos falando de uma mulher em seu caráter universal, a grande crítica do feminismo negro, pois o racismo e outras discriminações interagem com estas vivências. Vale dizer, não só a vivência da mulher que sofre a violência, mas também a vivência da própria instituição, formada em sua maioria por homens brancos. Mas sou otimista. Os ouvidos estão voltados a uma escuta capaz de movimentar as estruturas e creio que este é um dos passos para uma transformação.

MPD — Quais são os maiores desafios e a maior satisfação dessa profissão?

Fabíola Sucasas — Muitas vezes, depois de um dia de luta pelos direitos das pessoas, fui dormir sem conseguir compreender o sentido do “fazer a minha parte” e galgar tranquilidade. Muitos dizem isso: faço a minha parte, vou dormir tranquilo. Isso não é verdade. O desafio está aí, em conseguir que as nossas ferramentas alcancem a justiça e que o façam de forma rápida. Muitas vezes meus recursos, apelações, etc, foram acolhidos, mas nem sempre foram capazes de aplacar a dor da espera de suas resoluções. E nem sempre são as ferramentas que irão aplacar todas as demandas que envolvem a problemática levada ao sistema. Em poucas palavras, talvez dizer que o maior desafio está na garantia da satisfação do direito e, a maior satisfação, na alegria de ter contribuído para quem o alcançou.

MPD — Na sua opinião, quais são os pontos fortes do MP e onde a instituição precisa melhorar?

Fabíola Sucasas — Os pontos fortes estão nas potencialidades do Ministério Público, cuja atuação se opera dentro e fora do processo. Não é a ação judicial o seu único instrumento, e tampouco o diálogo e a articulação, suas únicas medidas. Mas a instituição precisa se reinventar, conduzir a sua atuação pautada nos princípios basilares dos Direitos Humanos, tanto na sua formação de pessoal, quanto na sua atuação institucional. A reengenharia também deve se pautar em uma atuação mais dinâmica e integrada, ainda que a especialização seja um caminho sem volta. Não há atuação individual que faça do Ministério Público uma Instituição, mas sim a sua formação coletiva.

MPD — O MP tem independência total para atuar? Se não, o que falta (legislação, jurisprudência)?

Fabíola Sucasas — A autonomia e a independência são valores irrenunciáveis ao Ministério Público. A independência funcional preserva a consciência da promotora e do promotor, mas não está afastada de controle. Ela não é e não pode ser ilimitada e nem afastada do respeito à dignidade da pessoa humana que fundamenta a República Federativa do Brasil. Qual garantia de justiça prestaria a atuação independente daquele que arquiva um inquérito policial por compreender que vivemos, por exemplo, uma democracia racial, e deixa de reconhecer um ato racista? Ou que nega a identidade transgênero como parte da personalidade da pessoa e discrimina a pessoa ao sequer atendê-la no gabinete por seu nome social? Muitos são os debates dos dias de hoje, mas nunca os direitos humanos deverão deixar de servir de base para os limites de qualquer atuação; neste passo, não devemos nos esquecer que, mesmo universais, a especificação de tais direitos, além de reivindicados e reconhecidos, devem ser respeitados. É o que falta, ou seja, a observância destes limites.

MPD — Quais são os maiores desafios e quais devem ser os objetivos do Ministério Público neste momento?

Fabíola Sucasas — A independência e autonomia da Instituição devem caminhar com orçamento, com recursos financeiros que garantam que ela possa, de fato, cumprir com todas as atribuições que lhe foram destinadas.  Esse o maior desafio, ou seja, garantir os meios para que sua finalidade possa ser atingida. Quero trazer também que, recentemente, em uma entrevista para a Folha de São Paulo, Jane Suiter, professora e pesquisadora da Universidade de Dublin, falou sobre a invasão junto ao Congresso americano. Disse que o ato serviu como um alerta para redefinir a liberdade de expressão e sugeriu que os países que queiram proteger suas democracias terão que redesenhar instituições e comunicação e atentar às ações autoritárias e manipuladoras. Não são poucas as vezes que o Ministério Público é instado a responder a tais situações, e seu objetivo sempre será o de proteger a democracia, garantir o seu exercício. Vale dizer, por fim, que os grandiosos objetivos da Instituição não devem ignorar alguns primados básicos, como o de que o Ministério Público serve a uma sociedade formada por pessoas diversas, com suas especificidades, e a quem deve ser salvaguardada a cidadania e o respeito a sua dignidade.

MPD — Qual a importância de um movimento de classe como o MPD?

Fabíola Sucasas — O MPD possui relevantíssimos objetivos sociais, promovendo a discussão sobre os princípios de justiça e de progresso, difundindo a defesa dos direitos humanos e o acesso à justiça, enfim, realizando uma série de ações que contribuem enormemente para a formação de opiniões e a reflexão crítica sobre os rumos das Instituições, das medidas adotadas por elas e pelas pessoas que as dirigem. Movimentos de classe são essenciais para a evolução das relações humanas e mobilização da transformação social.

MPD — Se você pudesse dar um conselho para um jovem formado em direito e que pretende ingressar no Ministério Público, qual seria?

Fabíola Sucasas — Que nunca se esqueça de que, antes de qualquer coisa, ele agirá em nome de uma Instituição e não em nome próprio; e que mantenha a humildade, servindo à sociedade e não a si mesmo.