Por Márcio Berclaz

De nada adianta a Constituição prever “impeachment” no artigo 85, reportando-se aos crimes de responsabilidade, quando a “lei especial” referida no texto constitucional é de 1950 e nela tudo cabe, não parecendo, à primeira análise, que as denominadas “pedaladas fiscais” representem atentado à “lei orçamentária”, nos termos do artigo 85, inciso VI, da Constituição, especialmente quando pende de julgamento as contas do governo, tanto pelo Tribunal de Contas da União, como pelo próprio Poder Legislativo; ainda mais quanto as contas supostamente merecedoras de reprovação dizem respeito a mandato já vencido.

O Parlamento pode e deve apreciar a admissibilidade e o julgamento de pedidos de “impeachment”, porém deve fazê-lo com os predicados exigidos de uma magistratura, inclusive com imparcialidade e isenção. Problema sério há quando a condução da pretensão de impedimento é manobrada por um Presidente da Câmara, este sim denunciado por delitos graves e com pedido de afastamento das funções apresentado pelo Procurador-Geral da República em dezembro ao Supremo Tribunal Federal sem que, estranhamente, tenha havido decisão até o presente momento.

Se o “impeachment” tem um misto de jurídico e politico, tal como a Constituição como “estatatuto jurídico do politico” – tanto é assim que já coube ao STF apresentar balizas norteadoras de parte do rito e procedimento a ser adotado – isso não desobriga a decisão adotada de estar amparada em fundamentos válidos e justificáveis, os quais devem ser interpretados com respeito ao princípio de que a possibilidade de alterar a verdade das urnas, qualquer que seja a esfera federativa, exige situações gravíssimas e excepcionais. Afastamento de autoridade eleita para exercício de mandato é medida que não pode ser banalizada.

Impeachment, definitivamente, não é atalho para implementação de premissas próprias do parlamentarismo; “impeachment” não é panaceia para crise política, econômica ou mesmo de valores; “impeachment” não é resposta para desaprovação ou descontentamento de parte da população. A coisa mais sagrada da democracia, como bema firma Lenio Streck, é a vontade do povo.

Assim, uma coisa é a existência e a previsão constitucional do “impeachment”; outra o preenchimento dos pressupostos fáticos para a sua sempre excepcional e particularíssima aplicação. A necessária convivência e conjugação da política com o jurídico tem limites e exige a comprovação de requisitos objetivos e subjetivos. O que pode justificar ou deslegitimar a proposta de entendimento são os fundamentos adotados; na falta de fundamentos ou no insuficiente desempenho de ônus argumentativo para preenchimento dos requisitos, é inevitável que sobre o tema tenha que se pronunciar o Supremo Tribunal Federal. Se este passou a ser um Tribunal que, por seus membros, muito fala fora dos autos e, quando provocado, não assume a sua responsabilidade de ditar a hermenêutica constitucional, algo está definitivamente fora da ordem constitucional.

A República exige a possibilidade de responsabilização administrativa, cível ou mesmo criminal; porém responsabilizar é uma coisa, outra é interromper mandato em curso para o qual houve regular e lícita eleição popular.

O direito precisa exercer sua função contramajoritária de estabelecer limites à volatilidade e ao ímpeto da política; se a política é pura vontade, o direito não. Como diria Hannah Arendt, “trata-se apenas de refletir sobre o que nós estamos fazendo”.

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR. Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público e do Movimento do Ministério Público Democrático. Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).