Por Gustavo Roberto Costa
Impor a um homem uma grave pena,
como é a privação da liberdade, uma
mancha em sua honra, como é a de se
haver estado na prisão, e isso sem que
fosse provado que ele é culpado e
com probabilidade de que seja inocente,
é algo que está muito
distante de justiça. [1]

Como já amplamente divulgado, no último dia 17 de fevereiro, o plenário do Supremo Tribunal Federal negou provimento ao HC 126.292, passando a permitir a execução da pena privativa de liberdade após decisão condenatória de segunda instância. Os críticos de tal decisão afirmam que a Constituição veda, sem exceção, o início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado. Os defensores do acórdão argumentam que permitir a prisão do condenado somente após a interposição de infindável número de recursos (inclusive aqueles meramente protelatórios) significaria um estímulo à impunidade. Ambos os lados têm sua parcela de razão.
Ocorre que o grande problema a ser enfrentado não é a prisão após a decisão condenatória em segunda instância, mas sim a prisão antes mesmo da sentença de primeira instância: a prisão preventiva. Nas penitenciárias, já temos 622.202 presos, dos quais 40% (cerca de 250.000) são presos provisórios. [2] Ou seja, presos que não têm culpa formada – podem ser absolvidos ou condenados a penas menos restritivas da liberdade.
Nosso Código de processo penal, inspirado no Código Rocco italiano (de ideologia fascista), foi promulgado em plena ditadura do Estado Novo. Naquele momento histórico, os direitos e garantias fundamentais eram solenemente ignorados – e vilipendiados –, e o sistema de justiça penal era somente mais um instrumento para a repressão estatal contra o cidadão. Que o diga o conhecido caso dos irmãos Naves. [3]
Para Geraldo Prado, o Código, naquilo que é central, funcionava [e continua funcionando] como “instrumento da política de segurança pública do Estado e não de previsão das regras do devido processo legal”. [4] Se dúvidas ainda há sobre o caráter autoritário do decreto, a leitura de sua exposição de motivos o deixa muito claro. Escreveu Francisco Campos ao presidente Getúlio Vargas:
“impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem [note-se bem: ação repressiva do Estado]. (…) Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. (…) É restringida a aplicação do in dubio pro reo”. Nada mais arbitrário.
Não obstante, convivemos com esse código naturalmente, mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, que elencou diversos direitos processuais penais a serem observados pela legislação de regência. O Brasil ainda é um dos poucos países da América do Sul que não editou um novo Código de processo penal após sua redemocratização. [5]
Uma das heranças mais evidentes do período ditatorial supracitado é a possibilidade da decretação da prisão preventiva para “a garantia da ordem pública” (CPP, art. 312). Expressão vaga e imprecisa, admite um sem número de interpretações. Junto da “ordem econômica”, é hipótese de restrição da liberdade que nada tem a ver com o processo; não tem caráter cautelar nem instrumental. É um fim em si mesma. Com origem na Alemanha dos anos 30, sua única finalidade é conceder uma autorização geral e irrestrita para prender. [6]
O que significa garantir a ordem pública? De que maneira se pode assegurá-la com a prisão de uma única pessoa? Diante da subjetividade do conceito, já se prendeu por esse motivo por interesse social (STJ, HC 4.230-3), por clamor público (STJ, RHC 6.050), pela gravidade do crime (STJ, HC 7620), pela periculosidade do agente (STF, RE 107.597) e, além de várias outras hipóteses, até para a proteção do próprio preso (?) (TJRJ, HC 8.402) [7].
Ocorre que não é atribuição do Poder Judiciário “garantir a ordem pública”. Trata-se de função típica do Poder Executivo, por meio de seus órgãos de segurança pública, elencados no art. 144 da Constituição Federal. Para Aury Lopes Junior, “trata-se de grave degeneração transformar uma medida processual em atividade tipicamente de polícia, utilizando-a indevidamente como medida de segurança pública”. [8] É o prestígio do Estado penal em detrimento do Estado de direito, em nome de uma suposta (e artificial) guerra contra “os inimigos da sociedade”.
Zaffaroni argumenta que no sistema penal cautelar da América Latina, “operam como pautas a seriedade da suspeita de cometimento de um delito (…) e considerações de periculosidade e dano, provenientes do positivismo do século XIX, ou seja, da individualização ôntica do inimigo”. [9] Afora isso, “aparecem as teses processualistas, que defendem a natureza não penal do confinamento cautelar, fundamentando-o de maneira às vezes bastante engenhosa, mas não conseguindo ocultar sua essência punitiva”. [10]
Num sistema constitucional preocupado com os direitos humanos, em que a liberdade é a regra quase absoluta (CF, art. 5º, LVII) – apesar de alguns ainda defenderem fervorosamente o contrário –, não há mais lugar para prisões preventivas para a garantia da ordem pública, que “possuem um defeito genérico: não são cautelares. Portanto, substancialmente inconstitucionais”. [11]
Em voto esclarecedor, o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho (hoje aposentado), do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, analisou a expressão legal: “A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrática –, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada – mera repetição de lei –, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, antigarantista, insuficiente, portanto”. [12]
A Lei n. 12.403/2011, contudo, trouxe ao ordenamento jurídico diversas medidas cautelares diversas da prisão, estabelecendo critérios para sua correta aplicação. O art. 282 do Código de processo penal, com a redação dada pela lei citada, passou a prescrever que as medidas cautelares – dentre elas a prisão preventiva (art. 282, § 6º) – devem ser aplicadas observando-se a “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais” (inciso I) e a “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado” (inciso II).
Desta forma, criou o legislador critérios objetivos, específicos e claros que devem ser avaliados pelo juiz ao impor a prisão preventiva, medida cautelar que é. Se houver, por exemplo, demonstração de reiteração criminosa, de que o acusado faz do crime seu meio de vida ou de que integre organização criminosa, e estiverem presentes os demais requisitos dos artigos 312 e 313 do Código de processo penal, poderá se justificar a imposição da medida drástica.
Eugênio Pacelli e Douglas Fischer, embora aceitem a prisão em razão da garantia da ordem pública, propõem solução semelhante. Entendem os autores que “uma interpretação conforme a Constituição pode e deve ser feita em relação à prisão para a garantia da ordem pública, de tal maneira que: I – somente se admita a prisão quando se tratar de crimes de natureza grave, sem prejuízo dos limites impostos no art. 313, I, CPP. A gravidade, em princípio, seria deduzida da pena cominada; II – a natureza do crime deve apontar ou indiciar a possibilidade concreta de reiteração criminosa, segundo seja a experiência do conhecimento humano de cada época”. [13]
Claro que de nada adiantará o juiz fundamentar a prisão nos termos legais sem apontar dados concretos que a justifiquem. Se for assim, tudo continuará como está, ou seja, uma enormidade de prisões preventivas mal fundamentadas. De nada valerá o avanço legislativo se a liberdade do cidadão continuar sendo restringida pela gravidade em abstrato do crime, por argumentos de apelo retórico e por juízos meramente conjecturais – tudo já repudiado pela Corte Suprema do país (v.g., HC 108.508 e HC 94.681).
Vale o alerta de Zaffaroni: “O Estado de Polícia que o Estado de direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e romper os muros que o Estado de direito lhe coloca”. [14] Arremata o autor: “A introdução do inimigo no direito ordinário (não propriamente bélico ou de guerra) de um Estado de direito o destrói, porque obscurece os limites do direito penal invocando a guerra, e os do direito humanitário invocando a criminalidade”. [15]
Já passa da hora de assumirmos que a função maior do Poder Judiciário (e também do Ministério Público) é garantir os direitos fundamentais do cidadão, e não combater a criminalidade. E uma boa forma de fazê-lo é abandonar de vez esses entulhos autoritários, incabíveis num Estado de Direito.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD e do Movimento LEAP-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition.
Referências
1 Concepción Arenal, apud ZAFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal, 2006, p. 113.

2 Segundo dados do Infopen, dez./ 2014, o Brasil já possui mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, e, no período de 25 anos, a população carcerária brasileira mais que sextuplicou.

3 Vide “O caso dos irmãos Naves” (Dir. Luiz Sérgio Person, 1967). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aMrZu0P9ikc

4 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório – A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3ª ed. Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2005, p. 223.

5 Ibidem. p. 224.

6 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12. ed. – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 648.

7 Julgados extraídos de: FRANCO, Alberto Silva, e STOCCO, Rui. Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Ed. RT., 1999. p. 1968/1979.

8 LOPES JR., op. cit. p. 648.

9 ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. p. 110.

10 Ibidem. p. 113.

11 LOPES JR., Aury. Op. cit. p. 652.

12 TJRS, HC 70006140693, Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. 23/04/2003.

13 PACELLI, Eugênio, FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 6. ed. – São Paulo: Atlas, 2014. p. 658.

14 ZAFFARONI. Op. cit. p. 170.

15 Ibidem. p. 171.