Por Márcio Berclaz
A segurança pública é um direito constitucional fundamental de dimensão social, nos termos dos artigos 5º, “caput” e 6º da Constituição da República.
Superado o binômio eurocêntrico modernidade/pós-modernidade para o tempo da transmodernidade próprio da perspectiva descolonial na qual estamos inseridos, dentro do paradigma filosófico da vida concreta, evidente que o Estado brasileiro precisa adotar ações e medidas que busquem conter a violência e que resguardar a preservação da vida e da integridade física de seus cidadãos. Quer-se não uma polícia que atue na mesma proporção que os marginais (lembremos que estes atuam fora do Estado), o que só aumenta a violência, mas medidas inteligentes e criativas passíveis de serem adotadas de modo legal e, sobretudo, legítimo.
Selecionar adequadamente o quadro de policiais e dos demais agentes de segurança pública, formá-los e treiná-los (de modo permanente) numa cultura de direitos humanos[1], dar-lhes ambiente, estrutura, instrumentos, condições e tecnologias para o trabalho, incluindo a perícia científica, cuidar de fatores inibitórios ou capazes de reduzir a criminalidade, apostar em eficiente policiamento ostensivo e comunitário, avaliar a geografia e o mapa dos delitos, estimular políticas públicas de esporte, lazer e cultura nas comunidades, todas essas são medidas e providências que contribuem para que a segurança pública seja desenvolvida como política.
Não por acaso o artigo 144 da Constituição estabelece a segurança pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, esta sim exercida para preservação da ordem pública pelos seguintes órgãos: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Assim, percebe-se que ao Poder Executivo Estadual compete, primariamente, a responsabilidade por segurança pública; em regime federativo desequilibrado, por mais que a União possa concorrer com recursos e que o Município possa esforça-se para contribuir de algum modo para gerir cidades mais sustentáveis, menos desiguais e, portanto, mais seguras – a competência precípua para a política de segurança pública depende da Secretaria específica criada para esta finalidade, a qual deve(ria) trabalhar de de modo articulado com outras pastas.
Indaga-se, então: qual o papel dos membros do Ministério Público para resguardar o direito constitucional à segurança pública? Conforme diagnóstico de Marco Antônio Lopes de Almeida, em específica reflexão sobre o tema, “O Ministério Público carece de uma metodologia de trabalho, com diretrizes institucionais e planos concretos”.
Cabe, no exercício das atribuições extrajudiciais de controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, da Constituição), a defesa do patrimônio público e direitos humanos, seja porque se questiona a presença de policiais militares em funções ostensivas e não administrativas, seja porque se cobra a realização de concurso público para provimento de cargos públicos vagos para a estruturação das polícias (e não contratações temporárias como hipótese simplesmente absurda, já adotada em alguns Estados brasileiros), seja porque sustenta-se que a formação dos policiais respeite a programática dos direitos humanos, seja porque abre-se possibilidades para que haja participação popular no controle desse serviço (ex: conselhos comunitários de segurança pública), como, por exemplo, permite a realização de audiência pública[2]. Todos esses são aspectos que, inegavelmente, concorrem para melhorar a segurança pública como direito e como política.
Do mesmo modo, louvável a iniciativa de se pensar na criação de órgãos de execução específicos para a tutela coletiva da segurança pública como política, o que fez recentemente, em caráter inovador e elogiável, o Ministério Público de Santa Catarina[3]. Ao invés de uma atuação simplesmente reativa e alienada, que “come na mão da Polícia” pelo que se recebe sem nenhuma perspectiva transformadora, sem dados, sem estatística e sem ferramentas de inteligência, tenta-se fazer algo “novo”. É de se esperar, contudo, que exista um adequado suporte de noções de gestão conjugada com conhecimento criminológico para que a ideia possa prosperar do melhor modo, pois na essência reside o debate de soluções que possam resultar na prevenção de crimes ou na potencialização de meios para que, quando isso não for possível, as investigações ocorram de modo adequado e propício à finalidade.
O que não se admite – mas que infelizmente acontece muito como discurso equivocado explícito ou implícito de diversos membros do Ministério Público, é que dentro da condução das ações penais, as quais devem observar parâmetros técnicos, aposte-se na compreensão de que a liberdade ou a prisão dos acusados seja determinada para impactar a segurança pública como direito do cidadão.
Nesse sentido, muito lúcida a reflexão de Marco Antônio Lopes de Almeida: “O papel de persecução criminal, a partir de onde nasceu o ‘Parquet’, apesar de relevante, pouco representa em termos de contenção de criminalidade. Esta existe e sempre existirá em níveis suportáveis em qualquer sociedade, por mais justa e equilibrada que seja. O que faz com que ela assuma proporções alarmantes nos países socialmente mais atrasados é o somatório de diversos fatores de delinquência cuja solução não passa pelo Direito Penal, mas sim por uma política social adequada”. Membros do Ministério Público formam convencimento jurídico-penal a partir de provas para denunciar, arquivar, pedir condenação ou absolvição, no que devem estar mobilizados por garantias e limites democráticos, não por pressões sociais, de senso comum, de apelo midiático ou de qualquer outra natureza.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR. Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público e do Movimento do Ministério Público Democrático. Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).