19 de março de 2018
Por Beatriz Helena Ramos Amaral
“Cidadania é o direito a ter direitos”
(Hannah Arendt)
Em 20 de fevereiro, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal proferiu julgamento histórico ao examinar e decidir o Habeas Corpus 143.641, impetrado pelo Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (Cadhu) e pela Defensoria Pública da União, bem como pelo defensor público-geral federal, tendo como amici curiae o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), além dos defensores públicos-gerais de todos os estados brasileiros.
A ação de Habeas Corpus coletivo apontou como pacientes “todas as mulheres submetidas a prisão cautelar no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade e das próprias crianças” e teve por objeto a conversão de prisão cautelar em prisão domiciliar.
Cabe destacar, de início, que o pedido — e seu deferimento — não contempla acusadas de crimes graves, como os cometidos mediante violência contra pessoa.
Indiscutivelmente, a impetração foi ousada e merece aplausos, pois muitos setores da sociedade civil já vinham há algum tempo alimentando sensação de descrença sobre o aparelho judiciário com relação a determinadas situações sócio-jurídicas coletivas que, por afrontarem com veemência a dignidade da pessoa humana, sempre ultrapassaram e muito as fronteiras do bom senso e, obviamente, os limites do exame de cada caso em particular.
A propósito da mencionada sensação de descrença, por parte da sociedade, vale lembrar a natureza e a conclusão dos estudos, pesquisas e análises de extraordinária profundidade desenvolvidos por juristas, dentro e fora da esfera acadêmica, dentre os quais merece destaque a voz do brilhante jus-sociólogo e professor José Eduardo Faria, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. As razões do descontentamento social, muitas vezes, originam-se do confronto entre o olhar leigo, as necessidades dos cidadãos e o excesso de barreiras provocadas pelo formalismo e pela estrutura de extrema burocracia instalada em nossa legislação, como bem retrata, em minúcia, o livro Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, organizado pelo professor José Eduardo Faria — e do qual também são coautores os professores Rolf Kuntz, José Reinaldo de Lima Lopes e Celso Fernandes Campilongo.
A histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, que deferiu às presas em prisão cautelar ou provisória a conversão para prisão domiciliar, tem, entre seus acertados embasamentos jurídicos, a revalorização de um princípio essencial ao Direito Penal, qual seja, o princípio da pessoalidade, da intranscendência ou intransmissibilidade da pena, segundo o qual a sanção decorrente de prática de delito só pode atingir a pessoa de seu autor e ninguém mais.
É óbvio que, ao vedar as mínimas condições de saúde e adequado desenvolvimento da gestação à presa, o Estado passa a penalizar de forma cruel e indigna a própria criança, o nascituro, o mesmo valendo para os casos de presa puérpera ou mãe de filho menor de 12 anos que dela dependa integralmente, pelas diversas razões jurídicas existentes e abordadas na ação de Habeas Corpus (inexistência de cônjuge, inexistência de outros parentes vivos ou conhecidos, situação de criança com deficiências físicas ou mentais ou outras patologias graves). E repita-se que o HC se restringe, evidentemente, às hipóteses de prisão provisória, prisão cautelar, ou seja ainda não se está a falar de pena propriamente dita.
Releva notar que, em muitos casos, findo o devido processo legal, as processadas são apenadas com sanções restritivas de direitos, quer por razões de ordem objetiva (natureza da infração, baixa potencialidade lesiva, ínfimo resultado ofensivo), quer por razões de ordem subjetiva (primariedade da acusada, ausência de antecedentes criminais, existência de ocupação lícita, laborativa ou não, anteriormente à prática do ato infracional). Mais injustificadamente ainda, nessas hipóteses, está a ocorrer flagrante e desarrazoada ofensa à saúde do nascituro.
A restrição à liberdade e a privação da liberdade são medidas excepcionais autorizadas pelo legislador constitucional e penal nas graves hipóteses de prática de crimes reconhecidas pelo Poder Judiciário, isto é, nos casos de prolação de sentença condenatória, em razão de ofensa a bens jurídicos tutelados pela lei penal. Somente em situações de evidente gravidade se justifica a prisão provisória, quer decorrente de situação de flagrante, quer preventiva. O uso indiscriminado da prisão cautelar conduziu a situações de absoluta iniquidade e degradação como as contempladas no pedido de Habeas Corpus em exame.
A concessão do writ trata de buscar a reparação das iniquidades, que se tornaram ainda mais gritantes diante de outra decisão proferida pelo mesmo Supremo Tribunal Federal, que, em meados de 2017, houve por bem conceder à mulher de um governador preso a prisão domiciliar sob a alegação de que possui filhos menores de 12 anos. Indignados com a injustiça decorrente da decisão — posto que as demais mulheres encarceradas, na mesma situação, que chegam a milhares, em nosso país, permaneciam nos presídios —, as entidades impetrantes buscaram pela via jurisdicional a restauração da isonomia. E o fizeram com acerto.
Nada mais se buscou, nada mais de fez senão dar efetivo e fiel cumprimento ao disposto na relativamente recente Lei Federal 13.257, de 8 de março de 2016, que modificou parcialmente o Código de Processo Penal, sendo chamada de “marco regulatório da infância”.
Neste ponto, abro breves parênteses para relembrar artigo de nossa autoria, intitulado “Alternativas ao Cárcere”, publicado na Revista do MPD – Dialógico, em maio de 2005. Naquela ocasião, externando nossa preocupação com a família e, sobretudo, com os filhos das presidiárias, escrevemos: “Em situações desnecessárias (nas quais se conjugam requisitos objetivos e subjetivos ensejadores da adoção das penas alternativas, isto é, delitos de pequena monta, primariedade e bons antecedentes do agente) os efeitos nefastos da aplicação das penas prisionais ultrapassam a pessoa do infrator. Atingem, na maior parte das vezes, suas famílias, ferindo-as nos aspectos econômico e emocional, abalando pais, cônjuges e, principalmente, os filhos” (grifos nossos).
Os direitos fundamentais da pessoa humana são soberanos e precisam ser exercitados cotidianamente. O excesso de formalismo da estrutura jurídica jamais poderá impedir a concretização da plena isonomia e da equidade. O direito está a serviço da sociedade e da dignidade de homens, mulheres e crianças. A hierarquia das leis jamais poderá ser olvidada ou negligenciada. Por todas essas razões, a decisão emanada do Supremo Tribunal Federal reafirmou, em seus próprios fundamentos, o pleno respeito à Constituição Federal de 1988, especificamente em seu artigo 5º, incisos XLV e XLVI. Como escreveu Hannan Arendt, “a cidadania é o direito a ter direitos”. Com eles, construímos o edifício denominado democracia.
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Referências bibliográficas
AMARAL, Beatriz Helena Ramos. Escritos Jurídicos e Memórias, RG Editores, 2016, São Paulo, 1ª. edição.
AMARAL, Beatriz Helena Ramos. Penas Restritivas de Direitos, in Doutrinas Essenciais – Direito Penal, volume 4, Coordenação de Alberto Silva Franco e Guilherme Nucci, RT, 2010, São Paulo.
AMARAL, Beatriz Helena Ramos. Alternativas ao cárcere: alguns aspectos, in MPD DIALÓGICO, Revista do Ministério Público Democrático, Maio/Junho 2005, Ano II, N.05, São Paulo.
AMARAL, Beatriz Helena Ramos. Penas Restritivas de Direitos: a prestação de serviços à comunidade. Destinação Social e Aspectos Constitucionais. Revista dos Tribunais, edição impressa, Dezembro-1992, Editora RT, São Paulo.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, 2ª. ed.,2015, Saraiva, São Paulo.
CANCIAN, Natália. CASADO, Letícia. Grávidas e mães de crianças de até 12 anos irão para prisão domiciliar. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, edição de 21 de fevereiro de 2018.
FARIA, José Eduardo (organizador) – com a colaboração de CAMPILONGO, Celso Fernandes.; LOPES, José Reinaldo de Lima; e KUNTZ, Rolf. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1ª. edição, 5ª. tiragem, Malheiros Editores, São Paulo.
MULHERES NA FRANÇA – O invisível caráter insalubre do trabalho feminino, Le Monde Diplomatique – Brasil, Ano II, n.125, dezembro de 2017, Santana do Parnaíba, SP.
REVISTA DO MPD DIALÓGICO n. Ano V, N.5, 2005.
REVISTA DO MPD DIALÓGICO Ano XIV, N. 52, 2017, páginas 40, 41 e 42 – Propostas para Melhoria do Sistema Penitenciário Brasileiro.
Beatriz Helena Ramos Amaral é procuradora de Justiça aposentada do MP-SP e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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