Por André Luis Alves de Melo

Atualmente, o termo “HC de ofício” tem sido muito usado na área jurídica. Contudo, não existe no CPP tal termo, embora exista o termo “de ofício ordem de Habeas Corpus” desde 1941, no CPP, uma vez que o artigo 654, parágrafo 2º do Código de Processo Penal prevê uma situação bem peculiar, qual seja, a concessão de ofício de ordem de Habeas Corpus, quando verificarem no curso de processo alguma ilegalidade que restrinja a liberdade, conforme artigo transcrito abaixo:

Art. 654, do CPP:
(…) § 2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. (grifo nosso)

Porém, apesar da terminologia na lei, talvez o termo mais adequado fosse “HC incidental”, afinal, é concedido em casos de processos ou recurso em curso. Ou seja, de forma incidental, em processo judicial em curso e que o tribunal tenha competência para o mesmo. Não podendo ocorrer a hipótese de o juiz, ou desembargador, ou ministro de tribunal superior estar assistindo à TV e, ao discordar de uma prisão, enviar um HC de ofício para que a polícia ou o tribunal inferior solte o acusado, por entender que a prisão é ilegal.

No entanto, situação parecida tem acontecido nos casos em que o tribunal não conhece do recurso e concede o que tem sido chamado de “HC de ofício”, embora apenas a ordem de soltura possa ser de ofício, e não o HC. Porém, como não se conheceu do recurso, não teria um processo/recurso em curso na sua jurisdição para conceder o HC.

Ora, se não é competente para julgar o caso, não pode conceder HC, pois também não é competente.

Este tema, pouco discutido formalmente no meio jurídico, já despertou a atenção da 1ª Turma do STF, em 2016, a qual iniciou o debate no HC 134.240-MT, em que se levantou a questão sobre se o STF entender que não é competente, ainda que naquele momento, não pode conceder o HC de ofício.

O relator do HC 134.240, ministro Fachin, votou pelo não conhecimento do habeas, de acordo com a jurisprudência da casa, e, antes de tratar da concessão ou não de ofício, o ministro Fux antecipou-se a favor da posição do MPF. Segundo o ministro, os argumentos da subprocuradora deveriam ser levados em consideração.

Efetivamente, nós estamos trocando seis por meia dúzia. O Supremo Tribunal Federal não conhece mas analisa o mérito para conceder ou não de ofício… Como parto desta premissa, de que há uma vulgarização na utilização do habeas corpus no STF, eu confesso que é a vez primeira que ouço essa argumentação nesse sentido de que efetivamente é uma heterodoxia do Supremo dizer que não cabe HC mas analisar para concessão de ofício. Eu particularmente entendo que essa seria a postura correta de um Supremo Tribunal Federal diante desta constatação real, eu acredito que realmente o Tribunal fique esperando o Supremo se pronunciar… Essa postura vai desabarrotar o Supremo Tribunal Federal.

Ao final, a decisão foi a seguinte:

Decisão: Por maioria de votos, a Turma não conheceu da impetração, nos termos do voto do Relator, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que conhecia e concedia a ordem. Falaram: o Dr. Antônio Carlos de Almeida Castro, pelo Paciente, e a Dra. Cláudia Sampaio Marques, Subprocuradora-Geral da República, pelo Ministério Público Federal. Presidência do Senhor Ministro Luís Roberto Barroso. 1ª Turma, 28.6.2016. (grifo nosso)

Ou seja, optaram tacitamente por não abordarem formalmente no STF, naquele acórdão, a questão do “HC de ofício”, embora tenham discutido.

O nosso CPP é de 1941, e nesta mesma época foi editado o CPC, o qual já foi totalmente renovado em 1973 e novamente em 2015. Mas o CPP não se consegue renovar no Legislativo e continuamos com o CPP de 1941. Apesar de várias reclamações, forças ocultas impedem que o Código seja renovado.

Logo, temas relevantes como HC coletivo, HC incidental e até mesmo o HC em primeira instância e nos tribunais de 2ª instância têm redação desatualizada. Por exemplo, no HC perante o tribunal ouve-se o procurador de Justiça e o juiz, mas não há oportunidade para o MP de 1ª instância se manifestar, sendo que o Ministério Público na 2ª instância não tem acesso ao inteiro teor do processo, mas apenas aos documentos informados pelo juiz ou pela defesa.

Se bem que é verdade que o Ministério Público na 2ª instância poderia pedir informações aos promotores na primeira instância, mas não o faz. São ilhas administrativas, e suspeitos em casos graves são soltos por informações incompletas, enquanto criminosos “pé de chinelo”, presos em flagrante, permanecem presos.

Tem sido comum que em casos como de “recursos não conhecidos”, “Habeas Corpus não conhecidos”, o tribunal conceda “Habeas Corpus de ofício”, mas essa medida é ilegal, uma vez que nos termos expressos do artigo 654, parágrafo 2º, do CPP, ao estabelecer que a ordem de ofício pode ser concedida no curso do processo, refere-se ao fato de curso do processo no qual o tribunal é competente. Caso contrário, poderia conceder o que chamam de “HC de ofício” em qualquer processo em curso, independentemente de ser o órgão competente para julgar o mérito do caso, o que seria uma espécie de jurisdição onipresente e onisciente.

Outro exemplo de ordem de ofício seria no caso de a parte impetrante não pedir a soltura liminarmente, mas o tribunal conceder liminarmente a soltura, ainda que baseada no “poder geral de cautela” do juiz.

Uma outra possibilidade de ordem de ofício de Habeas Corpus seria a parte pedir ao tribunal competente, em sede de HC, apenas a liberdade do investigado ou denunciado, e o tribunal, de ofício, conceder o trancamento da ação por questões diversas.

Portanto, como exemplo, se um tribunal não conhece do recurso, ainda que por intempestividade, não é o órgão competente para julgar o mérito, o qual exauriu na primeira instância. Logo, não pode conceder o que vem sido chamado de “HC de ofício”.

Ante o exposto, pode-se concluir que: o termo mais adequado seria “ordem de ofício expedida em Habeas Corpus incidental concedida em processo em curso”.

Ou seja, uma redação possível poderia ser a seguinte: os juízes e os tribunais podem expedir de ofício ordem de habeas corpus (incidental), no curso de processo do qual são competentes, conforme regras processuais. De qualquer forma, o termo incidental pode ser considerado como implícito, mesmo na redação atual do artigo 654, parágrafo 2º, do CPP.

Apenas pode conceder a ordem de ofício se o tribunal “conhecer” do recurso ou outra medida processual e for o tribunal competente para julgar o mérito. Caso contrário, a ordem de soltura é ilegal e não deve ser cumprida.

André Luis Alves de Melo é promotor de Justiça de Minas Gerais, doutor em Processo Penal Constitucional pela PUC-SP, mestre em Direito pela Unifran e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

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