Por Ariadne Cantú

 

A morte silenciosa dos inocentes. Falo de uma morte anunciada em 1500, ano da colonização do Brasil, quando tudo ainda era nudez e ingenuidade.

Um tempo em que desbravadores se depararam com um povo de crenças em deuses desconhecidos, se apropriaram de suas riquezas e, como brinde, lhes deram doenças.

Para esse povo, no princípio, eram espelhos trocados por produtos valiosos, hoje são carros de luxo que ocupam lugar nas trocas por territórios inundados de minério precioso.

A questão indígena, mesmo entre os assuntos jurídicos, representa um interesse menor, e pertence a um universo que incomoda e não tem voz.

Se, na cadeia de violações de direitos, as crianças ocupam o fim da linha da violência, certamente, a criança indígena consegue equilibrar-se um pouco abaixo desta linha.

Representam o maior número de crianças não alfabetizadas, o maior número de crianças sem registro de nascimento, o maior índice de crianças vítimas de mortalidade infantil, e o maior índice de crianças vítimas de violência sexual, duas vezes maior que outras crianças, segundo dados do IBGE.

Estamos diante de um patamar abaixo do fim da linha da violência, que caracteriza uma significativa parcela da infância brasileira.

Um contingente de crianças que se escora sob liames legais que se confundem com a garantia do direito fundamental à cultura, como se fosse possível estabelecer uma hierarquia entre os direitos fundamentais.

A questão é tão complexa que, ao se enfrentarem as causas da mortalidade infantil indígena, encontram-se falhas graves nas demarcações de terras, problemas socioeconômicos que se arrastam há mais de um século, o recrudescimento de tantos aspectos ligados à saúde, como alcoolismo, bem como, a deficiência de programas de proteção à saúde.

Em graus diferentes, dispersos em vários pontos do território brasileiro, os índios estão integrados à sociedade, e arbitrariedades têm sido praticadas, por vários segmentos, incluindo-se o jurídico, onde os operadores do direito têm receio de intervir, seja por desconhecimento de um assunto tão específico, ou seja pelo equívoco na interpretação do direito fundamental à cultura.

Certa vez, ouvi de um antropólogo que alguns índios esmolavam nas cidades, porque esta era sua natureza. Eram extrativistas sociais.

O propalado direito à cultura, que busca transformar em território intocado a intervenção para garantia de tantos direitos a este contingente específico, e que tem sido escudo para justificar a ausência de intervenções jurídicas, não anula o reconhecimento à evidente mutação desta cultura, por mera escolha dos representantes indígenas.

Toda cultura é dinâmica e está sujeita a mudanças de quem a constrói, e este princípio deve se aplicar também às culturas indígenas, embora seja fato que as mudanças para o bem dos povos indígenas gera polêmica e perseguição de agentes externos, alheios à realidade atual dos povos indígenas.

Pertenço a um Estado que abriga a segunda maior população indígena e, mesmo assim, essa população continua invisível, definhando silenciosamente, sob a sombra da perda de sua dignidade, provocada pelo confinamento em exíguo território.

A população Guarani Kaiowá, aglutinada nas imediações de Dourados, a segunda maior cidade do Estado, vive em território infinitamente menor do que o destinado ao cultivo do gado.

Vivem em situação tão extrema que, em 2012, pediram em uma carta aberta aos brancos, que fossem declarados mortos. Preferiam ser extintos a serem expulsos mais uma vez.

“Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais”.

Longe da terra de seus ancestrais, um índio não é índio. Não existe. Na tribo Guarani Kaiowá, uma das etnias em situação mais dramática do Brasil e talvez do mundo, ocorre o suicídio de um adolescente a cada seis dias, geralmente enforcado num pé de árvore, ante a falta de perspectiva de viver com dignidade no solo que foi de seus antepassados.

Na Bahia, certa vez ouvi de um colega o relato de que os Pataxós se embriagavam nas praças públicas das cidades vizinhas às tribos, enquanto as crianças choravam perambulando ao redor dos adultos, sem que o Conselho Tutelar pudesse intervir, pois raríssimas pessoas dominavam o idioma e a tribo é de reconhecida violência.

Tratamos, pois, de direitos fundamentais violados a céu aberto e sob os olhos do sistema de garantias.

As instituições do sistema de Justiça, que compõe o sistema de garantias do Estatuto da Criança e do Adolescente, não podem subsumir-se e calar-se inerte perante tão brutal e complexa realidade.

Mais do que uma questão de conflitos pela terra, a questão indígena deve demandar gentileza, respeito, solidariedade e seriedade, uma postura que precisa ser enfrentada com coragem e determinação por todo operador do direito que estiver em contato com a população indígena.

Ariadne Cantú é procuradora, coordenadora das procuradorias de interesses difusos e coletivos, e conselheira do Conselho Superior do MP-MS. Integrante do MPD.

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