9 de julho de 2018

Por Fabio Antonio Xavier de Moraes

O grande desafio para as legislações penais hoje é o combate às organizações criminosas, quando muitos dos mecanismos que visam inibi-la se contrapõem a direitos fundamentais, hipótese em que é pertinente a aplicação de princípios que visam ao equilíbrio entre os bens jurídicos conflitantes, sobretudo o princípio da proporcionalidade.

O crime organizado incentiva a macrocriminalidade, colocando em xeque a existência do próprio Estado Democrático de Direito na medida em que o substitui, usurpando suas funções diante do caos urbano e político, instalando-se como um poder paralelo, o qual, na maioria das vezes, é mais eficaz que o poder estatal.

Outrossim, a criminalidade organizada no Brasil se enraizou nos três Poderes do Estado. Assim, a relativização de alguns direitos fundamentais frente ao seu combate se faz necessária, bem como o aperfeiçoamento dos mecanismos de combate, principalmente devido à participação de agentes políticos e funcionários públicos na prática dos delitos necessários à consumação do delito fim de uma organização criminosa.

O poder paralelo criado através da criminalidade organizada banaliza as leis e viola os direitos das pessoas, alimentando-se especialmente da sonegação fiscal, dos jogos ilícitos, do tráfico de drogas e armas, da corrupção e da lavagem de dinheiro.

Atualmente, as organizações criminosas atuam de forma complexa, valendo-se da omissão do Estado e dos meios de comunicação para a prática dos mais variados delitos, os quais não possuem fronteiras, devendo, pois, prevalecer o direito que mais preserve a sociedade contra o crime organizado e as mazelas dele resultantes.

A associação de pessoas é fenômeno inerente à socialização humana. Ela ocorre, inclusive, devido à complexidade de alguns crimes, os quais são de difícil realização por apenas um homem.

No entanto, ao contrário do que ocorre com a maioria dos institutos penais e processuais penais, não é fácil estabelecer a origem da criminalidade organizada, haja vista o modus operandi de cada uma das diversas organizações criminosas.

A matriz de que se valeram as atuais organizações criminosas possui raízes históricas nas máfias italianas, na Yakuza japonesa e nas Tríades chinesas. Essas associações surgiram no século XVI com a finalidade de proteger classes sociais menos favorecidas e desamparadas contra as arbitrariedades praticadas pelos poderosos e pelo Estado, contando com a cumplicidade de autoridades corruptas das regiões onde atuavam.

No Brasil, a criminalidade organizada surgiu na cidade de Ilha Grande (RJ), no seio do Instituto Penal Cândido Mendes (“Caldeirão do Diabo”), na década de 1970, período em que presos políticos eram colocados em celas com criminosos comuns. Eles eram doutrinados, sendo-lhes repassadas as noções de organicidade, de não rendição frente à opressão, além de técnicas de guerrilha.

A primeira organização que surgiu foi o Comando Vermelho — ou Falange Vermelha —, seguida da facção criminosa PCC, na década de 1990.

O Comando Vermelho fundamentava sua atuação criminosa nos falsos ideais de “paz, justiça e liberdade”, praticando, principalmente, assaltos a bancos e tráfico de drogas.

Por sua vez, o PCC “desenvolveu-se sob a égide de um código de honra bastante rígido, organização de rebeliões generalizadas e prática de atividades criminosas intimidatórias”[1].

A Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, define, em seu artigo 2º, organização criminal como sendo “a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional”. Com isso, ocorreu a revogação tácita parcial da lei anterior quanto à conceituação de organizações criminosas, bem como a ab-rogação da Lei 9.034/95.

Para o combate à criminalidade organizada, a incidência de mecanismos operacionais legais (ação controlada e entrega vigiada, quebra de sigilos, interceptação ambiental, infiltração de agentes e delação premiada) se faz necessária. Ocorre que é quando há a utilização desses mecanismos que se alega ofensa a direitos e princípios fundamentais.

Cássio Roberto Conserino[2] aponta como principais características comuns às organizações criminosas o alto poder de corrupção, a legalização do dinheiro auferido ilicitamente, a estrutura hierárquica, o alto poder de intimidação e violência, a prestação de ofertas sociais, as conexões locais, regionais e internacionais, a utilização de meios tecnológicos e o alto grau de lesão ao patrimônio público.

Diante dessas características, a não utilização dos mecanismos operacionais legais importa, na maioria das vezes, em não responsabilização das pessoas envolvidas nos delitos organizacionais.

A questão levantada por aqueles que são alvo de participação se refere, como visto, à ilicitude na aplicação daqueles mecanismos sob uma análise dos diretos fundamentais.

A Lei 11.689/08, que recentemente alterou o CPP, não tratou da teoria da proporcionalidade aplicada à validade da prova ilícita. Não obstante, o princípio encontra-se implícito no texto constitucional e permite que, diante de uma colisão de bens constitucionalmente tutelados, o intérprete possa aquilatar os valores contrapostos e optar por aquele que se apresente mais relevante ao caso concreto.

Destarte, o que se discute é a admissibilidade ou não da prova ilícita no processo penal em se tratando de crime organizado, havendo aqueles que defendam a sua admissibilidade pro reo, em razão das teorias da proporcionalidade e da razoabilidade.

Os principais fundamentos doutrinários nesse sentido são de que o direito à liberdade e à ampla defesa parecem ser mais valiosos do que o direito à privacidade e ao fato de que, ao produzir prova ilícita, o réu estaria agindo em estado de necessidade, legítima defesa (causas excludentes de antijuridicidade) ou, no mínimo, por insuficiência de prova[3].

Há o entendimento, ainda, de que os sujeitos que, ao praticarem atos ilícitos, não observarem as liberdades públicas de terceiros e da sociedade como um todo, em desrespeito à dignidade humana, não poderão invocar, posteriormente, a ilicitude de certas provas a fim de afastar sua responsabilidade civil e criminal perante o Estado[4].

O critério da proporcionalidade pode e deve ser adotado em favor da sociedade (pro societate) em casos excepcionais, pois nenhum direito fundamental é ilimitado, principalmente quando se trata de crime organizado. Com efeito, a prova ilícita poderia ser admitida, desde que para resguardar outro direito fundamental tão ou mais valioso. Ignorar referida possibilidade é permitir que crimes graves ou praticados por organizações criminais fiquem impunes.

Neste diapasão, fato é que, se o fim precípuo do processo penal é a busca pela verdade real, não assiste razão à limitação da validade de prova eventualmente obtida por meio ilícito no âmbito dos crimes de organização criminosa se o que ela retrata é efetivamente verdade.

Devem ser observadas, ainda, as teorias da fonte independente, da atenuação do nexo causal, da descoberta inevitável e da boa-fé, doutrinas norte-americanas que buscam atenuar a prova ilícita por derivação, reforçando a possibilidade de aplicabilidade do princípio da proporcionalidade.

Aliás, a Lei 11.690/08 admitiu as provas derivadas das ilícitas quando obtidas por uma fonte independente. Assim, a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade decorre da análise dos direitos conflitantes: a busca pela verdade real ou a não responsabilização penal pelo crime de organização criminosa.

É evidente que o caso concreto deve nortear a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade, assim como das teorias norte-americanas citadas.

Devemos, no entanto, reconhecer que a criminalidade organizada é quem oferece reais ameaças aos direitos mais elementares da pessoa humana, motivo pelo qual alguns direitos fundamentais são relativizados, quer pelo próprio legislador, quer pelo Poder Judiciário quando da interpretação das leis em vigência.

Em síntese, tratando-se de criminalidade organizada, durante o processo de investigação ou mesmo diante da previsão legislativa, poderá ocorrer o confronto entre direitos fundamentais e, neste caso, deverá ser observado e aplicado o princípio da proporcionalidade, fazendo com que prevaleça o direito que eficazmente proteja a sociedade, já que este é o fundamento central do Estado Democrático de Direito.

[1] Victoria, Artur, Origem e evolução do crime organizado. Disponível em: <http://www.artigonal.com/educacao-artigos/origem-e-evolucao-do-crime-organizado-1224889.html>. Acesso em: 13 mar. 2012.
[2] CONSERINO, C. R. Crime organizado e institutos correlatos. Série Legislação Penal Especial. São Paulo: Atlas, 2011, p. 12-13.
[3] SILVA JUNIOR, W. N. da. Reforma tópica do processo penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principalmente modificações do júri. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 199.
[4] MORAES, A. de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 104.

Referências bibliográficas
FRANCO, A. S.; NUCCI, G. de S. Doutrinas Essenciais – Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
GOMES, L. F. Crime organizado (definição) e a Convenção de Palermo. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal nº 30, 2009.
MENDRONI, M. B. Crime organizado – aspectos e mecanismos legais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
MORAES, A. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
NUCCI, G. de S. Leis penais e processuais penais comentadas. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
SILVA, E. A. Crime organizado – procedimento probatório. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

Fabio Antonio Xavier de Moraes é promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

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