Por Plínio Antônio Britto Gentil, Charles Hamilton Santos Lima, Roberto Livianu, Márcio Soares Berclaz, Tiago de Toledo Rodrigues e Gustavo Roberto Costa

Propõe-se a interpretação conforme ou mesmo a modificação da Lei Federal 12846/13, a fim de que acordos de leniência sempre sejam objeto de ciência, fiscalização e possibilidade de intervenção do Ministério Público, que é a instituição constitucionalmente encarregada da defesa do regime democrático, da ordem jurídica e com protagonismo e independência para o combate à corrupção e defesa do patrimônio público.

Sem entrar no mérito da quantidade de pessoas presentes nas ruas no Brasil e mundo afora nem no perfil social, econômico e político dessas plurais e heterogêneas expressões, há certa convergência e consenso na percepção de que o principal grito ouvido nas mobilizações de 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto e 7 de setembro foi contra a corrupção –recente pesquisa Datafolha prova isso.

A preocupação coletiva voltada a discutir instituições, política e o interesse público, independente do matiz, é positiva no mundo contemporâneo individualista em que a invisibilidade do outro e a instantaneidade existencial própria das vivências da modernidade líquida, proposta pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, conspiram contra o necessário caráter solidário da vida em sociedade, da cada vez mais complexa missão de se “viver junto”.

Os protestos são uma retomada da pauta da ainda incompreendida e estudada “primavera brasileira” de junho de 2013, mobilização que inegavelmente deixou um grande legado ao Brasil. Num plano amplo, é o retorno de um sentimento de interesse pelo nosso futuro e projeto de nação, algo que não se manifestava tão vivamente desde o movimento das “Diretas Já!”.

Num plano concreto, é a reivindicação anticorrupção, determinante para a derrubada da PEC 37, que propunha a limitação do poder de investigação do Ministério Público (MP), e para a aprovação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13).

A atitude dos brasileiros em defesa do Ministério Público foi emblemática – seu ícone o simbólico e inédito abraço ao prédio do MP de São Paulo três dias antes da votação da Proposta de Emenda Constitucional, proposta que contou com a participação ativa do Movimento do Ministério Público Democrático.

O grau de expectativa social em relação ao combate à corrupção, especialmente por parte do Ministério Público, é alto, sendo inadmissíveis quaisquer iniciativas que possam amesquinhá-lo e diminui-lo ou que pretendam intimidar a instituição em razão das investigações de detentores de poder.

A lei 12.846/13, que nasceu para coibir a corrupção empresarial, criou o acordo de leniência e entregou poderes inéditos aos organismos de controle interno do Estado (Controladorias e Corregedorias). Eles estão legitimados a celebrar tais acordos com as empresas envolvidas em corrupção dispostas a admitir responsabilidades, a colaborar e a ressarcir danos.

Importante lembrar que a Lei surgiu no contexto de um pacto mundial anticorrupção, emanado da Convenção da OCDE de 1998 e de Mérida em 2003. Os países signatários editaram leis para coibir a corrupção de empresas. O mundo pressionava o Brasil, sob pena de cortes em financiamentos internacionais. Além de nós, apenas Irlanda do Norte e Argentina não tinham leis anticorrupção empresarial. Importante lembrar que no projeto original, de 2010, não se falava do instituto do acordo de leniência, que foi introduzido por emenda no apagar das luzes da discussão, que se concluiu a “toque de caixa” para supostamente dar uma satisfação ao povo logo após as manifestações de junho de 2013, tanto que a Lei 12.846/13 foi sancionada no sucessivo 1 de agosto do mesmo ano.

Por mais importante que seja compartilhar deveres e responsabilidades no combate à corrupção, por mais relevante que seja estimular o bom funcionamento do controle interno das instituições e de cada poder, tal como prescreve a parte final do artigo 70 da Constituição, não se pode esquecer, no entanto, que esses organismos, ainda que estruturados e com certa autonomia, integram a estrutura orgânica dos respectivos poderes, que seus chefes por vezes ocupam cargos e funções confiança nos governos nas instituições a que servem, e que a Lei nº 12.846/13 não nasceu para a simples salvação de empresas corruptas. Não se tem um órgão de Estado que, no plano federativo, exerça certa coordenadoria e supervisão independente de controle interno.

Definitivamente, não se pode dar margem ao oportunismo, permitindo que empresários desonestos restem eventualmente impunes ao ponto de estarem estimulados à primária violação inicial da lei para posterior e descriterioso acerto com o governo, acordo este que pode abranger, por exemplo, pena de proibição de contratar com o poder público. Não se pode permitir que uma estrutura de governo, eventualmente envolvidas e pressionadas por suspeitas de corrupção, acerte-se livremente com uma empresa igualmente suspeita (que pode até ter sido doadora na sua campanha), podendo buscar, inclusive, a partir disso, financiamentos com os bancos públicos, sem que haja fiscalização e possibilidade de intervenção pela instituição constitucionalmente encarregada do primário combate à corrupção e, inclusive, da defesa da ordem jurídica, no caso, o Ministério Público.

O Ministério Público é não só o principal legitimado pela Constituição da República a defender com independência o patrimônio público (artigo 129, III), mas também o titular exclusivo da ação penal pública (artigo 129, I).

Não se olvide, também, o impacto e a pertinência que eventuais acordos de leniência podem produzir no âmbito de ações penais e ações civis públicas de responsabilidade por ato de improbidade administrativa. Somente a ciência, de modo a permitir, via de consequência, a presença, o acompanhamento e a intervenção do Ministério Público, permite que esse novo e importante instrumento seja utilizado de modo responsável e legítimo, mais do que isso, com os controles e os filtros próprios do Estado Constitucional e democrático.

Como excluir o Ministério Público do âmbito de aplicação e incidência do instituto, se os órgão de controle sequer conhecem o alcance das investigações, muitas vezes de alcance e repercussão internacional, como bem exemplificam episódios recentes? Como ignorar todo o critério, expertise e experiência do Ministério Público na via da conciliação e da mediação, tal como ocorre no âmbito da justiça transacional e de consenso presente no âmbito de sua atuação extrajudicial resolutiva ou mesmo no rito de institutos despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional do processo?

Além disso, a concentração excessiva de poder nas mãos dos órgãos de controle interno não é saudável nem eficiente, especialmente tendo em vista que ainda não há uma estruturação humana e material adequada, muito menos uma efetiva cultura que permita independência e isenção devida dos referidos órgãos, os quais funcionam muitas vezes para mandatos diversos daqueles relacionados ao ocupante do poder.

Até porque na maioria dos mais de 5500 municípios do Brasil, antes de existir um órgão de “controladoria”, somente existe a figura solitária e insólita do “controlador interno”, não raras vezes ocupando cargo em comissão ou função comissionada, sem um plano de ação definido, sem previsão ou suficiente rubrica orçamentária, sem a devida estrutura auxiliar e de apoio e sem a articulação necessária com os demais órgãos. A marca do controle interno nos governos executivos municipais, de modo geral, ainda é de uma falta e inação grosseiramente constitutivas.

De forma acertada e sintonizada com o interesse público, o Senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) protocolou no dia 10 deste mês o elogiável Projeto de lei nº 105/15, que propõe vital modificação na lei que pretende coibir a corrupção empresarial, exigindo a homologação do acordo de leniência pelo Ministério Público, medida que o Governo Federal, até o momento, não incluiu no decreto de regulamentação da lei nem no pacote anticorrupção.

Em qualquer âmbito federativo, diante do caráter nacional do Ministério Público brasileiro, diante da consideração de que a instituição não exerce função de governo, mas sim função de garantia de defesa da Constituição e de direitos da sociedade brasileira, dentre os quais o protagonismo no combate à corrupção e defesa do patrimônio público, propõe-se que seja feita interpretação conforme a Constituição da lei ou, caso se entenda vedada esta hermenêutica, que então se modifique o conteúdo legal para tornar obrigatória a prévia ciência para possibilitar manifestação e intervenção do MP nos acordos de leniência, inclusive com a possibilidade de homologação judicial.

Antes de enfraquecer o acordo de leniência ou despotencializá-lo, ao contrário, o interesse e a previsão da possibilidade de manifestação do Ministério Público somente reforçam a importância e a utilidade do referido instrumento, permitindo que haja fiscalização sobre os seus termos e condições, tal como ocorre com outro instituto de justiça consensual ou negociada nos quais há o Ministério Público já tem experiência e manejo.

Melhor que o acordo de leniência seja qualificado pela presença e participação do Ministério Público do que desqualificado posteriormente de descriterioso e indevido, inclusive como risco de sua nulidade ser postulada e reconhecida pelo Poder Judiciário.

Proposta de enunciado

A ciência, com previsão e possibilidade de intervenção e manifestação do Ministério Público, no instituto dos acordos de leniência propostos ou concebidos originariamente pelos órgãos de controle interno, é imprescindível para garantir que a indisponibilidade do interesse público e de resguardo da ordem jurídica restem preservados.

*Esta coluna trata-se de tese aprovada no dia 9 de outubro, no XXI Congresso Nacional do Ministério Público, realizado no Rio de Janeiro.

Plínio Antônio Britto Gentil é procurador de Justiça de São Paulo, doutor em Direito Processual Penal pela PUC-SP e em Fundamentos da Educação pela UFSCar. Membro do Movimento Ministério Público Democrático (MPD).

Charles Hamilton Santos Lima é promotor de Justiça de Defesa da Cidadania do Recife. Membro do Movimento Ministério Público Democrático (MPD).

Roberto Livianu é promotor de Justiça em São Paulo, presidente do Movimento do Ministério Público Democrático, doutor em Direito pela USP e idealizador e coordenador da campanha Não Aceito Corrupção.

Márcio Soares Berclaz é promotor de Justiça no MP-PR. Segundo vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br).Membro do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br). Mestre em Direito do Estado (UFPR) e Doutorando em Direito das Relações Sociais (UFPR).

Tiago de Toledo Rodrigues é promotor de Justiça, membro do Movimento Ministério Público Democrático (MPD) e coordenador da coluna MP no Debate.

Gustavo Roberto Costa é promotor de Justiça em Lorena (SP) e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.