Por Wilson José Vinci Júnior e Luciana Vieira Dallaqua Vinci
Muito se discute, atualmente, a respeito das novas configurações de modelos familiares. A importância do vínculo afetivo para a caracterização do conceito de família tem norteado essas discussões e, inclusive, as decisões judiciais em lides familiares. Reconhece-se que família não é apenas a comunidade formada a partir de vínculos biológicos entre seus membros, mas também aquela unida pelo afeto, pelo desejo de convivência entre as pessoas.
O reconhecimento do vínculo afetivo nas relações familiares se presta a ser mais um elemento de proteção desta entidade. A mudança na concepção do que é uma família, a partir dessa nova premissa, tem surtido diversos efeitos jurídicos: efeitos patrimoniais, sucessórios, proteção do vínculo de filiação mesmo em casos de comprovada ausência do vínculo biológico de paternidade ou maternidade (quando constatada a existência de filiação socioafetiva), dentre outros.
Por outro lado, a cada dia desponta a constatação de um problema sério a ser enfrentado: a falta de afeto nas relações familiares e, em consequência, a irresponsabilidade no seio desta instituição. Famílias cujo elo é biológico, mas em que o afeto se perde ou, até mesmo, jamais esteve presente.
Em poucas palavras: há famílias fundadas somente em vínculos afetivos e outras em que só há vínculos biológicos. Neste segundo caso, quais as consequências da falta do dever de cuidado e de afeto entre seus membros?
A concepção de um filho no mundo contemporâneo nem sempre é refletida. As relações amorosas cada vez mais efêmeras têm como consequência, muitas vezes, o surgimento de pais e mães biológicos, mas não afetivos.
E mesmo no modelo de família propagado como tradicional, em que duas pessoas se unem e decidem ter filhos, muitas vezes, o que se verifica é que a vontade de ter filhos não necessariamente corresponde à vontade de serem verdadeiros pais e mães. A educação dos filhos é terceirizada, como se fosse dever da escola, da comunidade ou de qualquer pessoa, exceto dos pais.
Nessa realidade, é crescente o número de crianças e adolescentes que são órfãos de pais vivos. Tal situação é verificada em diferentes realidades, independentemente de classe social, grau de instrução ou outras características subjetivas. A alienação parental é exemplo claro dessa constatação: os pais e/ou mães alienadores usam seus filhos como objetos para satisfação de seus desejos egoísticos de vingança contra o outro, sem o menor respeito àqueles seres em formação.
Nesse contexto, também é cada vez maior a quantidade de avós que assumem a responsabilidade por seus netos, como se pais e mães fossem, muitas vezes com sacrifício do próprio sustento e qualidade de vida — entretanto, movidos pelo mais puro amor.
Em outro ângulo, tem-se que há muitos filhos que não se sentem responsáveis por cuidar de seus pais e mães idosos. Simplesmente se ocupam de suas próprias vidas, muitas vezes repetindo o exemplo de abandono afetivo vivenciado na infância. Com o aumento da longevidade, o abandono de idosos tem se tornado um problema crítico, uma vez que o Estado também não possui aparato para substituir a família no dever de cuidado.
Frise-se que esse retrato é feito empiricamente, com base nos diversos casos que têm sido levados ao Poder Judiciário todos os dias — como se ao Estado coubesse substituir as famílias em seu dever fundamental de mútua assistência e de definição de seu destino.
Vale ressaltar que o princípio da paternidade responsável (incluída, por óbvio, a maternidade responsável) e o princípio da dignidade da pessoa humana são assegurados constitucionalmente, como base para o planejamento familiar (artigo 226, parágrafo 7º, CF). A observância desses princípios não é, pois, uma mera opção, mas um imperativo constitucional, afinal, é cediço que, hodiernamente, princípios são espécies do gênero norma jurídica, de observância obrigatória.
Do mesmo modo, o dever de cuidado entre pais e filhos também é de natureza constitucional, como se constata do artigo 229:
“Artigo 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Saliente-se que as ações judiciais de indenização por abandono afetivo têm sido cada vez mais frequentes nos tribunais pátrios, e há grandes juristas que as defendem, assim como tantos outros que não as aprovam. Independentemente da opinião a respeito de seu cabimento, é fato que se trata de um instrumento que é incapaz de apagar da memória do abandonado os danos que sofreu e cujas sequelas carregará, muitas vezes, por toda a vida. Constitui meio direcionado à responsabilização do que abandonou, mas insuficiente, por si só, a reparar completamente o dano do abandonado. É premente, portanto, evitar que esses danos aconteçam, pois não se foge à regra geral de que é melhor prevenir a remediar.
Nesse cenário de abandono afetivo e irresponsabilidade familiar pelo cuidado das crianças e adolescentes, é surpreendente observar, por exemplo, que, em que pesem tantas discussões a respeito da modificação da maioridade penal, pouco ou nada se discute a respeito da fiscalização e responsabilização dos pais e mães pela assistência aos filhos que geraram. Qual o papel dos pais e mães na formação desses indivíduos e qual a responsabilidade de cada um desses membros quando o abandono afetivo se volta contra a sociedade em forma de violência?
Como regra, o ser humano é pródigo em reivindicar direitos, porém muitas vezes se esquece do cumprimento das obrigações que lhe são inerentes. Nesse sentido, a transformação da realidade brasileira depende não só da reivindicação de direitos, mas também da observância dos deveres constitucionalmente previstos, a começar pelas relações mais básicas do ser humano: as familiares. Eis o verdadeiro exercício da cidadania, que começa em cada lar deste país.
Enquanto não houver responsabilidade pelos seres concebidos e trazidos à luz — independentemente da discussão sobre modelos familiares —, a violência, a intolerância e o egoísmo dominarão todas as demais relações sociais, minando as esperanças de uma sociedade livre, justa e solidária, cuja construção é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Wilson José Vinci Júnior é procurador federal, membro da Academia Brasileira de Direito do Estado (ABDET) e mestrando em Direito pela PUC-SP.
Luciana Vieira Dallaqua Vinci é promotora de Justiça, membro do Ministério Público Democrático (MPD) e da Academia Brasileira de Direito do Estado (ABDET), além de mestranda em Direito pela PUC-SP.