9 de setembro de 2019

Por Rogério Alvarez de Oliveira

O tema da paternidade/maternidade vem experimentando notável evolução nos últimos anos, quer em razão dos avanços científicos, que têm oferecido múltiplas oportunidades aos casais ou possibilitando a busca do vínculo biológico com precisão, quer em razão do próprio progresso de nossa sociedade, que buscou afastar tabus como a filiação ilegítima e o casamento homoafetivo.

O direito, como não poderia deixar de ser, também vem buscando adaptar-se a essa nova realidade, passando a tutelar relações antes ignoradas.

O vínculo socioafetivo aparece como uma força jurídica expressiva e, por essa razão, merece atenção e regulamentação. Afinal, o artigo 1.593 do Código Civil admite não somente o parentesco consanguíneo, mas também o civil de outra origem.

Nesse contexto, como já é de conhecimento geral, a Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça editou, em 14 de novembro de 2017, o Provimento nº 63 estabelecendo regras para o procedimento do registro extrajudicial da filiação socioafetiva, estipulando na ocasião, dentre outras matérias, que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade seria autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais (art. 10).

Além disso, os filhos maiores de 12 anos deveriam expressar seu consentimento (art. 11, §4º), o que, por óbvio, indicava que os menores de 12 anos também poderiam se submeter ao reconhecimento extrajudicial, sendo desnecessário seu consentimento.

Ainda, restou estabelecido que o reconhecimento socioafetivo somente poderia ser realizado de forma unilateral e não implicaria o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo “filiação” no assento de nascimento (art. 14). Por fim, suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida, o registrador fundamentará a recusa, não praticará o ato e encaminhará o pedido ao juiz corregedor permanente dos serviços extrajudiciais da localidade, que decidirá sobre a questão (art. 12).

De forma resumida, assim eram os principais requisitos ao reconhecimento extrajudicial da paternidade/maternidade socioafetiva:
– Filhos de qualquer idade
– Para os maiores de 12 anos, necessário o seu consentimento
– Requerimento deve ser unilateral (somente um pai ou uma mãe socioafetivos)
– Impossibilidade de mais de dois pais ou de duas mães (um pai/mãe biológico e um pai/mãe socioafetivos)
– Necessidade de mera declaração dos interessados
– Consentimento pessoal do pai/mãe biológicos
– Deferimento do pedido pelo registrador, que remeterá o caso ao juiz em caso de dúvida

Todavia, a Corregedoria do CNJ houve por bem editar outro Provimento, sob nº 83, em 14 de agosto de 2019, modificando dispositivos do Provimento nº 63, anunciando mudanças significativas nos procedimentos extrajudiciais em questão, culminando por restringir algumas das hipóteses de reconhecimento extrajudicial socioafetivo que até então vinham sendo contempladas.

A partir de agora, somente as pessoas (filhos) acima de 12 anos poderão se valer do registro da filiação socioafetiva pela via extrajudicial, restando aos menores desta idade apenas a via judicial. A principal razão, a meu ver, para essa mudança diz respeito à preocupação com a possibilidade de burla à adoção. Em se tratando de adolescentes, estes podem manifestar sua concordância de modo mais veemente, o que não se verificava nos casos que envolviam crianças (menores de 12 anos).

De forma inovadora, restou também estabelecido que o registrador, após instruir o pedido com a documentação exigida, atestará a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos (art. 10-A, §1º). Entendia-se que o sistema anterior, que exigia apenas a declaração dos interessados, não apresentava a segurança devida.

Atendidos os requisitos necessários, o registrador, em vez de deferir o pedido, como anteriormente achava-se regulamentado, deverá encaminhar o expediente ao Ministério Público para parecer (art. 11, §9º). Se o parecer do MP for favorável, o registrador realizará o registro da filiação socioafetiva (inciso I do referido §9º). Se for desfavorável, o registrador não procederá o registro e arquivará o expediente, comunicando ao requerente (inciso II). E caso de dúvida, encaminhará o expediente ao juiz corregedor (inciso III).

Desse modo, o parecer do Ministério Público será terminativo, ou seja, será equivalente ao deferimento do pedido, não cabendo mais ao registrador essa decisão, pois, em sendo favorável o parecer, deverá ele proceder ao registro e, em sendo desfavorável, deverá arquivar o pedido. Trata-se de atribuição nova incumbida ao Ministério Público, em similaridade com o procedimento de habilitação de casamento, o qual somente tem prosseguimento com a concordância do MP (art. 1.526 do Código Civil), devendo ser submetida ao juiz somente em caso de impugnação.

Logo, os pedidos de reconhecimentos extrajudiciais somente serão submetidos ao juiz corregedor em caso de dúvida ou se houver reclamo dos interessados quanto ao parecer desfavorável do Ministério Público.

Há quem possa questionar, entretanto, se o CNJ tem poderes para impor essa atribuição extrajudicial aos membros do Ministério Público.

Finalmente, o novo provimento estabelece que, através da via extrajudicial, somente será possível a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado materno, seja do lado paterno (art. 14, §1º). A inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá ser reclamada pela via judicial.

A preocupação, nesse item, parece ter relação com a multiparentalidade, que, apesar de ter se tornado uma realidade fática e jurídica, poderia estar sujeita a abusos, como nos casos de “adoção à brasileira”. Afinal, envolvendo um pai “e” uma mãe socioafetivos, a hipótese poderia encobrir esse tipo de adoção irregular. Agora, havendo possibilidade de apenas um pai “ou” uma mãe socioafetivos, ficará mais difícil a burla à adoção. Assim, a multiparentalidade pela via extrajudicial, embora ainda permitida, passou a ser restrita a apenas um ascendente socioafetivo, restando ao segundo ascendente socioafetivo, se existente, socorrer-se da via judicial, onde o caso poderá ser melhor averiguado pelas equipes multidisciplinares do juízo.

Em resumo, assim passaram a ser os principais requisitos para o procedimento extrajudicial de reconhecimento de filiação socioafetiva com o advento do novo provimento:
– Exclusivamente para filhos acima de 12 anos, que deverão consentir
– Reconhecimento exclusivamente unilateral (somente um pai ou uma mãe socioafetiva)
– Necessidade de apresentação de prova do vínculo afetivo
– Consentimento do pai/mãe biológicos
– Atestado do registrador sobre a existência da afetividade
– Parecer favorável do Ministério Público, que equivalerá ao deferimento

Em conclusão, a opção do CNJ, em seu papel como órgão regulador, foi pelo caminho da segurança jurídica, preocupado em restringir eventuais abusos, mantendo ainda o viés da extrajudicialização já consagrado no provimento anterior.

 é promotor de Justiça do MP-SP e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

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Crédito da imagem: Pixabay