MP NO DEBATE
Ministério Público em segundo grau: procura-se “trabalho vivo” nesta passagem!
26 de janeiro de 2015, 9h00
Por Márcio Soares Berclaz
‘Chamamos repetidamente a atenção'(….), ‘às passagens que desembocam nos boulevards internos. Estas passagens, uma recente invenção do luxo industrial, são galerias cobertas de [telhado de] vidro e com paredes revestidas de mármore, que atravessam quarteirões inteiros [décadas], cujos proprietários se uniram [em verdadeira confraria] para esse tipo de especulação [inconstitucional]. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem sua luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que uma tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura. (…) Essa passagem é o locus classicus para a apresentação das passagens, não só porque a partir dela desenvolvem-se as divagações acerca do flâneur e do tempo, mas também porque o que se tem a dizer sobre a construção das passagens do ponto de vista econômico e arquitetônico poderia encontrar aqui o seu lugar [ou não lugar] Walter Benjamin[1]
Bem ensina Heidegger que o tempo é o genuíno horizonte de toda a interpretação do ser. Em pauta, como também se aprende com Ernildo Stein[2], não só os impasses do debate do realismo e idealismo, mas o “sentido do ser”. Nesse contexto, a Constituição da República de 1988 ainda clama por um novo Ministério Público atento ao direito e ao torto achado nas ruas, às vozes dos movimentos sociais e aos anseios da “potentia” (Dussel[3]) e do poder em si, que é sempre do povo, cansado e irritado de tanta injustiça social e “negatividade”. Nesse novo e difícil tempo do mundo, por óbvio que a crise e o repensar necessários ao balanço crítico de todas as instituições também precisam alcançar o Ministério Público, especialmente para modificar e cobrir de luz o refazer ontológico, metodológico e epistemológico da cambaleante atividade ministerial em segundo grau que, com muito mais defeitos do que virtudes, ainda não é, mesmo sendo.
Esse Ministério Público em segundo grau, perdido numa tradição inautêntica e desvairada da qual teimosamente não se desapega, está ainda muito distante de desbravar a contento os férteis — e a estas alturas já conhecidos — territórios da Carta da República, tal como bem posto nos seus artigos 127 e 129, que deveriam ser lidos todos os dias como “reza” ou “prece” institucional, verdadeiro ato de fé necessário num viver junto que, para ter paz e não guerra, precisa ser respeitosamente laico e secularizado. Nesse nível de atuação do Ministério Público, definitivamente, alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem constitucional!
Pois então, vai-se diretamente ao assunto tendo por norte um marco específico. Já passam quase quatro anos da importante, histórica e esperançosa Recomendação 19 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), publicada em 8 de junho de 2011, de autoria do então conselheiro Cláudio Barros (MP-RS), que, em suma, sabiamente, apontou todos os dedos para problema e sugeriu alguns caminhos democráticos para a premente reformulação ou mesmo a reinvenção do Ministério Público em segundo grau.
Chama-se atenção para o fato de que essa notável Recomendação foi bastante tolerante e razoável, salientando a importância do assunto ser discutido mediante a realização permanente de encontro e discussões a respeito das funções e papel do Ministério Público e segundo grau, destacando a importância de divisão equânime de processos (especialmente quando a Emenda Constitucional 45/2004, no parágrafo quinto do artigo 128, já define que “a distribuição de processos no Ministério Público será imediata”), prevendo, inclusive, a relevância de ser editado ato interno disciplinando as matérias para atuação em segundo grau.
Pode-se dizer tudo, menos que o CNMP agiu autoritariamente e atropelou as coisas, violando a questionável autonomia federativa dos Ministérios Públicos (por muitos tidas como quase ilimitada), especialmente quando existe um comando constitucional claro de unidade do Ministério Público, notadamente quando se sabe que o Ministério Público de Alagoas tem a mesma missão constitucional do Ministério Público do Rio Grande do Sul, quando se está diante de uma mesma carreira pública com uma atividade finalística idêntica em todo o território nacional.
Ainda, a mencionada Recomendação afirmava que o Conselho Nacional realizaria “encontro nacional com membros do Ministério Público com atuação em segundo grau, com o fim de discutir questões referentes à Instituição e ao exercício de suas funções”.
Qual o resultado disso? Infelizmente, pouco ou quase nada mudou no âmbito dos “resultados efetivos para a sociedade”, não tendo havido, até agora, a devida “valorização” e aproveitamento da experiência dos membros do Ministério Público em segundo grau.
Exceção feita aos membros do Ministério Público em segundo grau despertos conscientes (ao que tudo indica, colhidos no varejo), que sabem que atuar judicialmente e apenas como órgão interveniente (“custos legis”) é insuficiente para dar conta de cumprir o papel constitucional do Ministério Público (artigos 127 e 129 da Constituição da República), não é preciso muito esforço para perceber que a maioria dos Ministérios Públicos brasileiros descumpriu a recomendação em questão.
Escassos, sem repercussão ou quando não inexistentes foram os eventos para discussão do segundo grau nas diversas ramificações do Ministério Público brasileiro (não se tem notícia de que o próprio Conselho Nacional do Ministério Público tenha realizado o evento que afirmou que faria! O mesmo vale para as entidades e associações de classe e outros espaços colegiados de reunião da cúpula do Ministério Público brasileiro). Criou-se condição para a superação do “calcanhar de Aquiles” do Ministério Público brasileiro”, sem que a transformação tenha ocorrido de modo efetivo e substancial. Mudou-se não mudando.
A reformulação do segundo grau, especificamente no que diz respeito ao ramo do Ministério Público Estadual, passa pela compreensão de que o procurador de Justiça, embora tenha o mesmo subsídio do desembargador atuante junto ao tribunal de Justiça, precisa priorizar a atuação judicial como parte, e não como fiscal da lei, além de, claro, assumir, urgentemente, as necessárias atribuições extrajudiciais, especialmente no que diz respeito à fiscalização da estrutura de cúpula dos poderes e instituições do Estado.
Nada, absolutamente nada precisa ser feito ou reformulado no plano legislativo para que assim ocorra. A Constituição já diz e exige isso, nos próprios verbos que utiliza nos já mencionados artigos 127 e 129, dispositivos nos quais a ênfase no aspecto ativo do “promover” não serve de abrigo para a mera atividade parecerista que, sozinha, admite uma atividade de segundo grau desalinhada e desencaixada do perfil constitucional, para dizer o mínimo.
A atividade “parecerista” isolada e solipsisticamente considerada não mais se justifica, mas para isso é preciso estar conectado com a realidade e interessado com os plurais desafios do Ministério Público contemporâneo, incluindo não só uma atuação criminal estratégica para os delitos de prerrogativa de foro como a tutela adequada dos interesses difusos, o que pressupõe um funcionamento adequado e exemplar dos Centros de Apoio como órgãos auxiliares, sendo esses, aliás, um ótimo lugar para que os procuradores de Justiça assumam relevante papel extrajudicial, sem prejuízo de que as procuradorias de Justiça, como órgãos de execução que são, reconheçam que não vivem apenas à sombra de uma Câmara no Tribunal de Justiça, incumbindo-lhes promover, por exemplo, a fiscalização da cúpula do Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e do Tribunal de Contas (ou alguém acha que essa atividade se desenvolve de modo satisfatório e suficiente?).
É rigorosamente inaceitável que o Ministério Público em segundo grau, especialmente no âmbito do Ministério Público dos estados, continue do jeito torto e avesso que está: insosso, acomodado, descafeinado (Baudrillard), desprestigiado, desestimulado e substancialmente alienado da operosa missão constitucional. Tal situação não poderá perdurar, aliás, já deveria ter sido revertida há muito.
Na lista dos entraves está a estrutura pouco democrática do Ministério Público no âmbito de sua política e tomada de decisões internas. Mudar isso é tocar a raiz do problema. Diz-se isso porque, curiosamente, o defensor do regime democrático ostenta diminuta democracia interna na sua vertente participação, pois, por exemplo, no âmbito do Ministério Público Estadual, os principais órgãos colegiados de deliberação na Administração Superior são compostos apenas por procuradores de Justiça. Explica-se: o Colégio, como o nome diz, é aristocraticamente apenas de procuradores ao invés de ser de membros; o Conselho Superior do Ministério Público também só é composto de procuradores de Justiça; somente procuradores de Justiça podem ser corregedores-gerais do Ministério Público, sendo que são essas mesmas corregedorias que, ao que sabe, não fiscalizam de modo efetivo as atividades do Ministério Público em segundo grau em correições e inspeções ordinárias; em alguns estados, ainda, membros do Ministério Público de primeiro grau não podem ser procuradores-gerais; some-se isso a uma brutal e extraordinária concentração de poderes no âmbito dos procuradores-gerais e talvez se encontre parte da explicação para a verdadeira estrutura “fetichizada” do Ministério Público em segundo grau.
Esse quadro é constrangedor, especialmente considerando que, como bem afirma Marcelo Pedroso Goulart[4], “a Constituição definiu o Ministério Público como instituição essencial à implementação do projeto de democracia substantiva, vinculando-o a este projeto”. Ainda, adverte Goulart: “verifica-se que o Ministério Público muito avançou no processo de transição da sociedade política para a sociedade civil, mas ainda não se consolidou como instituição catártica. A transição não chegou ao seu estágio final, e, para isso, ainda depende da formação de uma vontade coletiva interna democrática que permita, no interior da Instituição, a passagem do momento corporativo para o momento ético-político (catarse interna). A partir daí poderá garantir a unidade ideológica e a unidade de ação a habilitar-se, definitivamente, como órgão mediador da catarse social”.
De fato, a muitos interessa a pacata e agradável ociosidade (dolce far niente) e o verdadeiro sossego que, com mais ou menos ênfase, pode se transformar a atuação ministerial em segundo grau, o que se estende não só ao membro mas também na desproporção dos serviços atribuídos aos próprios órgãos auxiliares, seja na distribuição quantitativa, seja na comparação desproporcional em relação aos órgãos de execução de primeiro grau.
Diferentemente do Poder Judiciário, que não ostenta grande diferença de volume de trabalho entre primeiro e segundo grau, excetuadas as diferenciações que decorrem do esforço e do desprendimento individual de valorosos procuradores de Justiça que exercem suas funções de modo pleno, inclusive com exercício de atribuições extrajudiciais, de modo geral há um abismo a separar a carga de trabalho do promotor de Justiça do procurador de Justiça na realidade atual do Ministério Público.
Como já se disse em outra reflexão sobre o tema[5], “o Ministério Público em segundo grau, com sua atuação focada no míope e quase exclusivo exercício de atribuições de mero órgão interveniente, continua agindo (e se escondendo) na sombra da caverna do Poder Judiciário em uma estrutura formal-parecerista de diminuta resolutividade que precisa urgentemente de revisão e redimensionamento à luz e influxo do inexorável paradigma constitucional”.
Cá “entre nós” (Lévinas), é hora do “face-a-face” indicativo de que essa “totalidade” cega precisa ceder lugar à “exterioridade”. Chega de se dizer retoricamente que se constrói jurisprudência, quando, em verdade, “parecer”, especialmente quando desacompanhado de recurso feito pelo autor do parecer, está mais para fazer, quando muito, “doutrina”.
Por maiores que sejam as resistências, para uma geração que recebeu um Ministério Público constitucionalmente hidratado e equiparado em vencimentos e garantias com o Poder Judiciário, mudar e transformar o segundo grau da instituição é dever ético de uma filosofia primeira.
Ouvi certa feita de um procurador de Justiça que muito admiro e prezo: “Márcio, é dever desta nova geração de promotores de Justiça lutar para que haja uma verdadeira transformação do Ministério Público atuante em segundo grau”. É por isso que fileiras devem ser cerradas. Não há espaço para aceitarmos essa “vida de gado”. “E ter que demonstrar sua coragem à margem do que possa aparecer, e ver que toda essa engrenagem, já sente a ferrugem lhe comer” (Zé Ramalho).
Como ensina o precioso Lenio Streck[6] — que, a propósito, já faz muita falta ao quadro ativo do Ministério Público desde sua recente aposentadoria, “para romper com esta tradição inautêntica (…) trata-se de compreender que a especificidade do campo jurídico implica, necessariamente, entendê-lo como mecanismo prático que provoca (e pode provocar), mudanças na realidade. No topo do ordenamento está a Constituição. Esta Lei Maior deve ser entendida como algo que constitui a sociedade, é dizer, a constituição do país é a sua Constituição” (…) nada pode ser se não for constitucionalmente legítimo. O ente só se manifestará se nele for levado a mostrar-se o ser da Constituição, isso porque o ser se dá sempre e somente enquanto ser de um ente, podendo nele ocultar-se. Consequentemente, não há (verá) ente jurídico sem o ser constitucionalizado/constitucionalizante, que nele deve ser mostrado”.
Tomando de empréstimo as categorias e ensinamentos de Marx e de outros pensadores preocupados com a “libertação” (Enrique Dussel/Celso Ludwig[7]), é mais do que tempo e hora de tomar posição dialética (ou mesmo para além disso: analética), abrir os “classificados” e travar luta constante e incessante à procura desesperada de um “trabalho vivo” de carne e osso com melhor fonte de valor para o Ministério Público em segundo grau, nível de atuação que deve estar atento à realidade exterior, ao paradigma da vida, dos problemas concretos das pessoas e do Estado brasileiro nas suas múltiplas e complexas determinações, situados muito além do mero exercício de atribuições judiciais, ainda mais quando essas são reduzidas à atuação como órgão interveniente em processos de outras partes e advogados. Do jeito que está não dá.
Para satisfação das necessidades sociais com alguma legitimidade, é preciso, como ensina o método de Marx, mudar o “modo de produção”, ir da aparência para a essência, do abstrato ao concreto, aplicando sempre as devidas “mediações”. Não se ignore que há capacidade, experiência e qualidade de trabalho no segundo grau ministerial. Basta querer. Como ensina Zizek[8], “quem passa pelo tratamento psicanalítico aprende a esclarecer seus desejos: eu quero mesmo isso que quero?”. Afinal, quem quer “pôr ordem constitucional na casa”? Apresente-se, por favor.
Além da intelectualidade orgânica (Gramsci) de membros e servidores do próprio Ministério Público — e já existe bons trabalhos e reflexões sobre o segundo grau[9], a universidade, a sociedade e os meios de comunicação com responsabilidade social também precisam cobrar essa conta. Aliás, por que raios ainda não o fazem? Quando essas interpelações ocorrerem, aí sim teremos “tempos interessantes” (Zizek).
Até lá, resta seguir mirando os (des) caminhos do Ministério Público em segundo grau, às vezes de modo ingênuo e quase quixotescamente (como ensina Orwell, toda opinião revolucionária extrai parte de sua força da convicção secreta de que nada pode ser mudado), juntando trapos, agitando e chegando daqui e dali, tateando ingredientes que sirvam de combustível para romper diques e obstáculos na guerrilha necessária pelo respeito e cumprimento da Constituição, com a férrea determinação de Gramsci para ser otimista na vontade e pessimista na razão, sempre com coragem e, claro, sem perder a ternura, jamais. Saudações democráticas!
[1] Passagens: Editora UFMG, 2009.
[2] Seis estudos sobre “ser e o tempo”: Editora Vozes, 2008.
[3] Política de la Liberación. Volumen II. Arquitectónica: Editorial Trotta, 2009.
[4] Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. Editora Arraes, 2013.
[5] BERCLAZ, Márcio Soares. O Ministério Público em segundo grau diante do enigma da esfinge (e a Constituição da República): decifra-me ou devoro-te! Publicado originariamente na obra “Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais”, organizada por Carlos Vinícius Alves Ribeiro e publicada pela Editora Atlas, em 2010. Disponível em: http://www.gnmp.com.br/publicacao/103/o-ministerio-publico-em-segundo-grau-diante-do-enigma-da-esfinge-e-da-constituicao-da-republica-decifra-me-ou-devoro-te
[6] Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10a edição. Livraria do Advogado, 2011, p. 345/346.
[7] Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Conceito Editorial: 2006.
[8] Vivendo no fim dos tempos. Boitempo Editorial: 2012.
[9] Marconi Falcone (MP-RN). Rodrigo Régnier Chemim Guimarães(MP-PR), podendo ser acessado em: http://www.gnmp.com.br/publicacao/257/bases-historicas-para-repensar-a-atuacao-do-ministerio-publico-nos-feitos-criminais-em-segundo-grau-de-jurisdicao
Márcio Soares Berclaz é promotor de Justiça no MP-PR. Segundo vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br).Membro do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br). Mestre em Direito do Estado (UFPR) e Doutorando em Direito das Relações Sociais (UFPR).
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