Por Celeste Leite dos Santos e Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos*
20/01/2023 | 04h00

Tradicionalmente a força é considerada um meio para a realização do Direito, sendo necessária para o exercício do poder, mas não para justificá-lo. O que o justifica é o consenso obtido seguindo os ditames constitucionais. Atual o parecer de Hans Kelsen ao analisar a situação existente no Brasil na década de 30, sobre os eventos da Assembleia Nacional Constituinte, cujos trechos reproduzimos.

“Às perguntas que me dirigiram respondo desde um ponto de vista não político ou jusnaturalista, mas somente e exclusivamente do ponto de vista jurídico positivo:

[…]1. Não existe diferença essencial entre um governo de fato e um governo de jure em direito das gentes e menos ainda no domínio do Direito Constitucional. A concepção de soberania(em sentido estrito), no verdadeiro sentido da palavra, de nenhum modo pode ser enquadrada no domínio do direito positivo. Nem mesmo o Estado como tal é soberano, pois acima dele se encontra o direito das gentes, o que lhe confere direitos e obrigações.

“[…] Os poderes legislativo, judiciário e executivo são executores da elaboração da Constituição. Ofendendo-se suas disposições, ofende-se a organização da sociedade em vigor. Em dependência das circunstâncias poderá valer isso como uma tentativa para, por meio de revolução, tornar-se um órgão sob todos os pontos de vista constituinte, isto é, originário”. (Hans Kelsen, Genebra, 14  de outubro de 1933).

O poder jurídico é definido por Kelsen como o poder de produzir (ou aplicar) normas jurídicas. É preciso partir das normas para justificar o poder. Bobbio, por sua vez, nos explica que o poder não deve ser confundido com a força, particularmente com a força física. É preciso obedecer ao poder constituinte originário (Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico,1990).

A legitimidade é um atributo do poder, em conformidade com uma escala superior de valores. O princípio básico legitimador do poder é a eleição. O valor nuclear da democracia reside na liberdade e no respeito aos direitos fundamentais. A lei é o símbolo do poder que a fundamenta. Assim, os direitos e os deveres transformam-se em direitos e deveres institucionais.

O atentado de 8 de janeiro de 2023, ocorrido em Brasília não caracteriza mero ato de desobediência civil, como veremos a seguir. Ad primum, por contestar o resultado de eleições sem qualquer fundamento técnico. Ad secundum, pelo emprego deliberado de violência contra os prédios públicos que simbolizam os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.  Ad tertium, configuram como já salientado pelo Ministro Alexandre de Moraes os crimes previstos no Título XII – Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, Capítulo II- Dos Crimes Contra as Instituições Democráticas, a saber: abolição violenta do Estado democrático de Direito (art. 359-L) punido com pena de reclusão de 4 a 8 anos, além da pena correspondente a violência, uma vez que manifesto o propósito de impedir e restringir o exercício dos poderes constitucionais; insurreição (art. 359-M), pois houve tentativa de depor com violência e grave ameaça o governo legalmente constituído, punido com reclusão de 4 a 12 anos, além da pena correspondente a violência. Dado o sistema do cúmulo material de infrações, os perpetradores ainda poderão responder pelos delitos de ameaça, perseguição, incitação ao crime, dano ao patrimônio público e cultural, associação criminosa e/ou organização criminosa, prevaricação, dentre outros, na medida de suas responsabilidades.

O eufemismo “governo provisório” mencionado nos documentos apreendidos pela polícia federal indicam que integrantes do governo passado possuíam domínio do fato ocorrido. O modus operandi utilizado já é conhecido, eis que encontra sua origem no golpe de Estado de 1930, tendo o povo brasileiro vivenciado período de trevas até a promulgação da Constituição de 1934. O período democrático foi só um sopro, eis que em 1937 foi outorgada nova Constituição, motivada pelo propósito de Getúlio Vargas em perpetuar-se no poder.

A Lei n. 13. 260, de 16 de março de 2016, define no art. 2° o terrorismo como “a prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública” (grifo nosso). Portanto, exige o dolo específico de discriminação, preconceito de raça, cor, etnia e religião. A vinculação a tais finalidades se esquece que o terrorismo também se dá por razões políticas, ideológicas ou contra o Estado Democrático de Direito. Tais fatos foram alvo de acirradas críticas pela doutrina pátria desde a sua promulgação. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 11007/2018 que define terrorismo, dispõe sobre investigação criminal e meios de obtenção de prova, estabelece políticas e estratégias antiterroristas, medidas de prevenção ao aumento de atores terroristas, diminuição dos riscos de atentado e de seus impactos, medidas de persecução penal a atividades terroristas e altera a lei vigente. O art. 2° prevê “O terrorismo consiste na prática por uma ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, dos atos previstos neste artigo, com finalidade política, religiosa, ideológica ou contra a organização do Estado Democrático de Direito, por meio de intimidação ou terror social” (grifo nosso).

Em análise perfunctória é possível afirmar que houve subsunção aos crimes previstos na lei antiterrorismo, eis que é fato notório que nas camisetas dos participantes do atentado havia menções de exaltação ao regime nazista e, portanto, demonstram que a finalidade específica exigida pelo tipo penal, qual seja, razão de discriminação ou preconceito de raça. A esse respeito, o Ministro Alexandre de Moraes pontuou que: “A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler”.

Inexistindo qualquer dúvida quanto a real finalidade dos participantes do movimento antidemocrático é possível a prisão em flagrante inclusive pela prática de atos preparatórios, ante a existência de expressa previsão legal.

O terrorismo se caracteriza pela existência de círculos de expansão e tem origem na radicalização de determinada ideologia propagada. Ele é composto pela organização terrorista propriamente dita, colaboradores individuais, simpatizantes e comunidade de referência. Sua estrutura tradicionalmente assume duas feições básicas: estrela ou olho (quando a sua organização possui um ator proeminente ou líder carismático); movimentos acéfalos ou sem líderes – composto por redes multicanais na qual nenhuma das unidades se dedica a orientar o comportamento das demais.

No Brasil, nos parece que, a expansão da organização terrorista demonstra a existência de um eixo de centralidade de suas decisões, havendo comunicação entre as distintas células terroristas espalhadas no território nacional por meio de redes sociais e grupos de whatsapp, dentre outros, sendo possível afirmar que sua tipologia é de estrela ou olho.

Quanto se há expressado, uma violação desses limites, violou gravemente a natureza da Constituição Federal.

Feitas essas considerações, deixamos ao prudente arbítrio do leitor a conclusão quanto a verdadeira natureza dos atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília.

*Celeste Leite dos Santos, presidente do Instituto Brasileiro de Atenção e Proteção Integral a Vítimas (Pró Vítima), doutora pela USP, gestora do Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos do Ministério Público de São Paulo (Projeto Avarc), promotora de Justiça integrante do Movimento do Ministério Público Democrático

*Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, professora livre-docente em Direito Penal pela USP,  professora doutora em Filosofia do Direito pela PUC/SP