Na medida em que as mulheres, como grupo social, se movem e se projetam como agentes políticos e sociais, novas formas de agressões vão surgindo com o propósito firme e consciente de impô-las ao retorno, ou seja, àquele lugar de inferioridade, exclusão, estagnação e invisibilidade
Por Bianca Stella Azevedo Barroso, 25/07/2024 07h30
Se garantir o direito a defender direitos é tarefa difícil, ainda mais complexo se torna quando se fala na garantia dos direitos das mulheres. Porque não se trata apenas de dar efetividade ao que já foi conquistado, mas buscar novas formas de proteção e, o que é pior, impedir retrocesso.
Neste ponto, parafraseando Ângela Davis, dizemos que o direito das mulheres precisa de vigilância constante. Sim, é exaustivo. E não se pode pensar em descansar porque existem milhões de vidas femininas no mundo, e gerações vindouras que merecem viver sua humanidade de forma mais justa, menos inferiorizada e com ambiência para desenvolver suas potencialidades sem comprometer sua segurança simplesmente por existirem.
Não é preciso nos aprofundarmos em teorias feministas, sociais, históricas e antropológicas – sem desmerecer suas importâncias – para perceber como a violência contra a mulher embora antiga, se moderniza e se movimenta a fim de atingir um número cada vez um número maior delas.
Apenas no século XX, com a primeira conferência mundial sobre a mulher no México em 1975, as mulheres conseguiram se organizar globalmente para dar luz ao combate a discriminação, mobilizando a ONU para elaborar a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW (1979), e apenas em 1993 – já no final desse século – foi aprovada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, aprovada 1994, pela OEA, pelo que podemos imaginar que foram pelo menos 19 séculos sob o império da discriminação, da violência legitimada, da opressão legalizada e da exclusão justificada por valores sociais e culturais em todo mundo.
Vale rememorar que a maior tônica da CEDAW – 1979 foi a violência doméstica, ou seja, aquela praticada no ambiente privado, familiar e com laços de afetividade, sendo considerada pelo Comitê da ONU como uma das mais repugnantes formas de violência. Entretanto, a Convenção de Belém do Pará reconhece a necessidade proteção a mulher não apenas em ambientes privados, mas também em lugares públicos.
Assim, considerando que atualmente as mulheres estão presentes nos lugares públicos, convém perceber como as violências encontram novas roupagens para atacar as mulheres, assim como um movimento persecutório.
Na medida em que as mulheres, como grupo social, se movem e se projetam como agentes políticos e sociais, novas formas de agressões vão surgindo com o propósito firme e consciente de impô-las ao retorno, ou seja, àquele lugar de inferioridade, exclusão, estagnação e invisibilidade.
É uma luta ora silenciosa, ora barulhenta, mas sempre violenta para manutenção do status social masculino.
Não há sossego quando se trata de ser mulher.
Recentemente, vários veículos de imprensa noticiaram que a Sra. Maria da Penha Fernandes precisou entrar no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos – PPDDH, após se sentir ameaçada e correr risco de vida.
Veja, a Sra. Maria da Penha emprestou seu nome a maior lei protetiva sobre direitos das mulheres no Brasil – Lei nº 11.340/06, e tal fato não decorreu de qualquer homenagem graciosa, mas em razão de uma vida de enfretamento permeada pela violência física, que a tornou paraplégica aos 38 anos, violência psicológica e moral que foi, e continua, sendo exposta a sociedade brasileira e mundial, chegando a expor as vísceras de um sistema de justiça institucional e social injusto e anacrônico.
Pois, foi assim que o estado brasileiro foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH/OEA, no caso da Sra. Maria da Penha, em 2001, por violar os deveres assumidos na Convenção de Belém do Pará, especialmente quanto a não garantir às pessoas que estão sob a jurisdição brasileira a plenitude e liberdade no exercício de seus direitos, como bem destacou a professora Flavia Piovesan. https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista57/revista57_70.pdf
Então, após 40 anos de peregrinação em busca de justiça a Sra. Maria da Penha ainda precisa recorrer ao estado em busca de proteção em razão de se sentir ameaçada em sua vida, ao tempo em que suporta narrativas que colocam em xeque a sua história.
Neste ponto cabe o alerta máximo quanto ao fato de que a atividade de desconstrução da história da Maria da Penha não se dirige apenas a ela mas às mulheres, como grupo social vulnerável, porque busca na verdade o enfraquecimento e a quebra de estrutura da maior lei brasileira que nos traz um microssistema de proteção aos direitos das mulheres.
Some-se a este fato que o anuário brasileiro de segurança pública de 2024, aponta o crescimento da violência contra as mulheres em todas as modalidades, com destaque a formas que, embora de conhecimento antigo, apenas houve o reconhecimento formal mais recente como a “perseguição” e a violência psicologia, cujos aumentos de registros atingiram 34,5% e 33,8% dos casos, respectivamente.
Se por um lado os dados nos causam repúdio e preocupação, por outro verificamos a alta de concessões de medidas protetivas de urgência, o que significa mais denúncias e pedidos de socorro, e nos direcionam para realização de políticas públicas mais assertivas.
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E já que falamos de políticas públicas, destacamos a importância da presença das mulheres em ambientes políticos, e espaços de poder e decisão, como é o caso dos parlamentos, para dar efetividade as ações afirmativas, considerando que o Brasil apresenta déficit de mulheres nos mandatos eletivos.
No entanto, nesta seara as mulheres também são atingidas por sérias turbulências, sendo a mais recente a aprovação pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição que pretende anistiar os partidos políticos que não cumpriram a cota de financiamento para candidatura de grupos vulneráveis, a famigerada PEC 09/2023 notadamente em prejuízo às campanhas femininas, levando ao esfacelamento das ações afirmativas em prol das mulheres na política.
E por falar em Congresso Nacional, merece ainda trazer outro tumulto, desta vez acerca dos direitos reprodutivos, constante no Projeto de Lei nº 1.904/24, conhecido por PL antiaborto, que prevê a equiparação da prática do aborto, nos casos que exemplifica, ao crime de homicídio, trazendo o retorno à discussão sobre decisões externas acerca corpos e vida de mulheres, especialmente as de tenra idade e de baixa renda, sem um debate amadurecido sobre a gravidez na adolescência, a cultura do estupro, a saúde pública, e o casamento precoce.
Este é um breve panorama sobre o difícil trabalho de defender os direitos das mulheres, que sofre ataques múltiplos por velhos e novos atores sob vários ângulos, e demandam de energia redobrada, persistência, trabalho qualificado e multidisciplinar, sem perder o foco na perspectiva de direitos humanos que orbita em torno delas.
Mas nenhum desses ataques aconteceria se não fosse a potência.
Partindo do pressuposto fático que as questões de gênero se referem a relações de poder, ou seja, a histórica e equivocada construção social de superioridade do homem sobre a mulher, e, atualmente o mundo vibra em torno da emancipação social feminina, dos postos conquistados por elas que são a maioria populacional no Brasil, a maioria eleitoral, a maioria a concluir cursos superiores e a assumir a chefia nas relações parentais, as mulheres são a potência social. Em crescimento e sem retorno aos lugares mais sombrios e obscuros da história da sociedade moderna.
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica.
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