Por Andre Luis Alves de Melo*
02/03/2023 | 05h00

Embora tenha havido evolução de instrumentos probatórios em razão do avanço da tecnologia, o que se observa é que prevalece o fetiche pela prova testemunhal no processo penal.

Alguns chegam a perguntar se pode haver denúncia criminal sem prova testemunhal, ou seja, não se pode denunciar usando apenas prova documental, pericial ou outro tipo de prova. No entanto, em nenhum dispositivo legal há esta exigência de prova testemunhal para referendar as demais provas.

Outra práxis desarrozada é arrolar sempre policiais militares para confirmarem o que dizem nos BOs ou APFDs, como se fossem mentirosos ou cometessem o crime de falsidade ideológica falseando as informações nos documentos, os quais em tese gozam de fé pública. Na verdade, esta aversão por um suposto estado policial tem endereço certo em determinada ideologia política e jurídica que grassa ainda no Brasil, e que oportunamente será melhor exposta.

Ora, se já há testemunhas civis e vítimas que podem ser arroladas na denúncia, então a retirada de um policial do policiamento ostensivo para ir confirmar as suas informações registradas em documento público é despicienda, embora não vedada. No entanto, tornou-se uma prática, inclusive judicial, de exigir que a acusação arrole policiais apenas para dizerem que confirmam o que está no BO, pois não se lembram dos fatos.

O equívoco deste pensamento burocrático é acreditar que a acusação deve provar apenas com prova testemunhal como principal meio de prova. E a situação caminha para o absurdo quando se exige que no caso, por exemplo, de porte de arma de fogo, drogas ou embriaguez ao volante, em que há laudos periciais, que se arrole também prova testemunhal, sob pena de absolvição.

Em breve, em razão da contaminação epidêmica do garantismo da impunidade no Brasil, estarão exigindo que quem elaborou o laudo que atesta o entorpecente, seja arrolado em juízo para confirmar o que está no laudo. Ou então, que se arrole para ser ouvido em audiência o perito que elaborou o laudo que constatou a embriaguez ou a eficiência da arma de fogo, para se fazer a seguinte pergunta, conforme os burocratas do processo: “o senhor confirma que a arma de fogo em que realizou o teste é eficiente?”. Resposta: “Sim, não lembro, mas confirmo porque está no laudo que assinei”.

Já aconteceu casos em que mesmo o réu confessando que estava com a arma de fogo ou quando é declarado revel, e tendo laudo atestando a eficiência da arma, sem questionamento da defesa, mesmo assim foi absolvido por não ter prova testemunhal. Mas, o BO/APFD atesta que a arma foi encontrada com X e o laudo registra a sua eficiência, sendo que a defesa não junta documentos que comprovem o réu ter porte ou registro da arma de fogo.

A situação é totalmente desproporcional, pois no dia a dia do processo penal, a práxis é a Promotoria arrolar policiais para chegarem em juízo e confirmarem o que está no BO ou APFD, isto é, alegarem que não se lembram dos fatos, mas confirmam a assinatura no documento, logo fatos que já constam do mesmo. Em razão disso, dezenas de policiais em uma Comarca são retirados diariamente do serviço para irem ao fórum confirmarem a assinatura nos documentos e perdem uma tarde inteira para comparecerem à audiência.

Em breve, irão anular processos por não se ter arrolado o registrador que assinou a certidão de nascimento de eventual criminoso, uma vez que deveria ter sido arrolado para em juízo confirmar que realmente o criminoso nasceu, pois a certidão de nascimento, por si só, não foi submetida ao crivo judicial do contraditório.

Todo este problema decorre de uma interpretação equivocada do art. 155 do CPP, o qual estabelece:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas

Ocorre que as declarações constantes do BO e do APFD ou oitivas na fase investigativa valem como prova documental e não apenas são prova testemunhal, quando juntadas no processo penal. Não pode o Judiciário obrigar a acusação a transformar a prova documental, a qual está submetida ao contraditório judicial, em prova testemunhal.

Além disso, tecnicamente o que está constante do APFD, BO ou oitiva é uma prova documental irrepetível, afinal o fato de poder serem ouvidos como testemunhas, não ilide o caráter irrepetível da prova documental.

Trata-se de interpretação equivocada sustentar que o documento, APFD, BO ou termo de oitivas, contendo declarações de pessoas não ouvidas em juízo, seja prova não submetida ao crivo judicial e do contraditório, pois estão nos autos e podem ter o seu teor questionado, mas o que não se pode presumir é que não tem validade como prova documental.

Contudo, no momento atual da idolatria ao garantismo da impunidade no Brasil, o que não acontece nem na Itália, onde foi concebido, mas é pouco ovacionado. No entanto, no Brasil inauguramos uma fase recente em que o processo penal não tem mais fim de buscar a apuração da responsabilidade pessoal do autor, nem dar segurança pública à sociedade, mas sim busca-se apenas nulidades e armadilhas processuais, e também a prescrição, pois em geral, mais de 60% dos processos penais prescrevem, enquanto em 30% há condenação e apenas em 10% há absolvição, logo o caminho mais seguro para a defesa é buscar nulidade processual e facilitar a prescrição. Os Tribunais Superiores não declaram prescrição em regra, deixam a desconcertante situação para as instâncias inferiores quando os processos retornam, após infindáveis recursos.

Há até situações teratológicas em que em casos de crimes tributários, por exemplo, arrolam o fiscal tributário para confirmar em juízo o que já declarou nas suas análises fiscais. Ou seja, nem há uma dúvida razoável, mas apenas para confirmar em juízo, embora o documento fiscal juntado já tenha fé pública.

A questão é tão desproporcional, por exemplo, que para uma multa de trânsito por dirigir embriagado veículo automotor tem multa administrativa em torno de 3 salários mínimos, conforme art. 165 do CTB, e sem necessidade de que agentes de trânsito confirmem em audiência administrativa.  No entanto, para o processo penal com base no art. 306 do CTB a pena em geral é convertida geralmente em 01 salário mínimo, e exige toda uma burocracia penal que acaba implicando em prescrição, caso não haja suspensão do processo e fique aguardando pauta para audiência judicial o que tem levado de 02 a 05 anos.

Não se está afirmando que a prova testemunhal deve ser banida. Mas, no caso do APFD ou BO basta a acusação juntar a documentação, e se a defesa discordar do que está constante da documentação ou desconfiar dos policiais que os arrole e faça perguntas que apontem no sentido de que há mentiras na documentação investigativa. E não faz sentido que o Ministério Público tenha que arrolar os policiais para simplesmente confirmarem o que já está no papel e que o Ministério Público concorda com o teor.

Com esta mudança de arquétipo haveria uma redução enorme no número de audiências, ou no mínimo, redução no tempo da audiência, sem nenhum prejuízo à defesa, pois esta pode arrolar os policiais que entender necessário para esclarecem pontos duvidosos ou questionar eventuais inverdades. Logo, nem há necessidade de alterar a redação do artigo 155 do CPP, basta que seja interpretado de forma racional e funcional.

*Andre Luis Alves de Melo, promotor de Justiça em MG, doutor em Processo Penal Constitucional pela PUC SP e associado do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica