Outubro foi marcado por nossas eleições gerais para o Congresso Nacional, parlamentos estaduais, Presidência da República e governo dos estados. Uma eleição diferente de todas as outras que tivemos desde a redemocratização em razão da elevada polaridade entre duas forças políticas desde o início do processo eleitoral. A polarização eliminou, desde cedo, especialmente no caso da Presidência da República, a viabilidade de quaisquer outras candidaturas que não representassem os dois campos em disputa. A luta pelos governos estaduais também sofreu forte influência dessa polarização.

Proclamados os resultados de primeiro e segundo turnos, eis que surgiu no Brasil um movimento organizado de contestação do resultado das eleições presidenciais baseado em alegada fraude eleitoral ocorrida no sistema eletrônico de votação, fraude essa jamais provada. Desde antes das eleições de 2018, já se construía a doutrina da vulnerabilidade das urnas eletrônicas como meio preparatório para criação do ambiente adequado para contestação do resultado eleitoral. Como em 2018, o grupo que defendia a existência de fraude foi vitorioso, não houve maiores problemas, a não ser afirmações levianas repetidas aqui e acolá que, se não houvesse fraude, teriam vencido por margem maior ou ainda no primeiro turno e coisas que tais. Em 2022, entretanto, o resultado foi oposto e a derrota do grupo contestador se deu por reduzida margem, situação propícia para a proliferação de teorias conspiratórias de toda ordem que “provariam” que o resultado desfavorável somente ocorreu em razão de fraude nas urnas eletrônicas.

Ainda em 2014, quando a eleição presidencial também se decidiu por pequena diferença, com virada ocorrida na fase final da apuração, criou-se um clima de dúvida sobre a integridade do processo eleitoral. O partido derrotado na ocasião teve acesso a todas as informações de votação de cada seção eleitoral do país e não contestou o resultado. A dúvida lançada com aquela virada no final da apuração, contudo, parece ter ficado no inconsciente coletivo da população brasileira, dando azo à narrativa de eleições fraudadas.

Nosso sistema eleitoral é seguro. Diferentemente de bancos e outras organizações com bases de dados sensíveis, vez por outra atacadas por hackers, as urnas não estão conectadas de nenhum modo à Internet, vale dizer, não há como um ator externo acessar e manipular o seu conteúdo, porque não há conexão delas com o mundo exterior.

Em todas as eleições, há sempre um momento em que especialistas em tecnologia da informação indicados pelos partidos políticos ou convidados pela Justiça Eleitoral têm a oportunidade de examinar as urnas eletrônicas e submetê-las a testes variados visando encontrar qualquer vulnerabilidade que deva ser corrigida antes do processo eleitoral.

Além disso, o processo de fiscalização pelos partidos políticos é constante. Antes da distribuição das urnas aos locais de votação, é realizado sorteio de várias delas para checagem de seu correto funcionamento. No início da manhã das eleições, imprime-se um boletim com o conteúdo de cada urna, registrando a existência de zero votos, razão pela qual esse boletim tem o nome de zerésima. No fim do dia, imprime-se novo boletim, novamente com a presença autorizada de fiscais das agremiações políticas, com a quantidade de votos dada a cada candidato. Esse boletim é afixado na porta da seção eleitoral. Daí pra frente, o que ocorre é mera operação de soma dos votos de cada candidato em cada seção eleitoral. Essa operação pode ser repetida um milhão de vezes e dará sempre o mesmo resultado. Não há lugar para imaginar que possa ocorrer alguma fraude no processo de totalização dos votos.

Apesar disso tudo, sobrevivem as narrativas de que empresas estrangeiras teriam acesso aos dados dos votos e poderiam alterá-los ou de que haveria uma sala secreta no Tribunal Superior Eleitoral na qual seus dirigentes poderiam manipular os resultados, favorecendo seus candidatos preferidos.

Nos últimos quatro anos, os ataques à integridade das urnas foram constantes, ao ponto de instituições, como Tribunal de Contas da União e as Forças Armadas, que nada têm que ver com a realização do processo eleitoral, conduzirem auditorias para certificar a incolumidade das eleições.

A participação do TCU se afigura mais razoável que a das Forças Armadas. Sendo o TSE o próprio executor de todo o procedimento eleitoral, ele mesmo afirmar que faz tudo de forma correta pode não soar de todo convincente e isento aos ouvidos mais céticos. A certificação por um órgão de controle externo, que goza de independência e autonomia em relação aos três poderes e que tem por função cotidiana realizar auditorias, embora desnecessária e algo inusitado, cumpriu o bom papel de reforçar a credibilidade do sistema eletrônico de votação. O TCU mobilizou grande contingente de servidores para essa missão e entregou seus resultados com celeridade.

Já as Forças Armadas participaram em razão de sua expertise em defesa de ataques cibernéticos, com capacidade técnica para avaliar a integridade das urnas e do sistema de totalização de votos. Ao contrário do TCU, contudo, as Forças Armadas estão subordinadas ao chefe do Poder Executivo, parte interessada no resultado das eleições e da auditoria. Embora tenha apresentado um tempo maior do que o esperado para sua divulgação, o relatório das Forças Armadas confirmou a segurança das urnas eletrônicas ao não apontar nenhuma falha em seu funcionamento.

Apesar disso, ainda não ocorreu algo que é considerado um gesto de civilidade política e de pacificação social: o reconhecimento público e inequívoco da legitimidade do resultado por parte do candidato derrotado. Essa omissão tem alimentado a persistente onda de contestação do resultado eleitoral e gerado um clima de tensão e mal-estar em nossa sociedade. Centenas de pessoas acampam em frente a quarteis e outras instalações militares pedindo que as Forças Armadas intervenham não se sabe bem como nem para quê, além de impedir a posse do presidente eleito, como se elas tivessem legitimidade para afirmar que as eleições foram viciadas ou para substituir os eleitos na condução do país. Não é esse o papel constitucional das Forças Armadas.

É preciso respeitar a vontade dos cidadãos. Pois bem, os cidadãos falaram através de seus votos, escolheram a composição do Congresso Nacional e elegeram seus governadores e seu Presidente da República com maioria absoluta dos que votaram. Quem perdeu, perdeu por falta de votos. Simples assim. Há que se reconhecer a soberania da vontade popular. O país precisa estar em paz com isso. Aos derrotados nas urnas, resta trabalhar para conquistar os eleitores nas próximas eleições, oportunidade de mudança e renovação que só a democracia oferece.

*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de Contas junto ao TCU e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático

 

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica